quinta-feira, 22 de abril de 2010

Sobre o risco de anomia na sociedade contemporânea



Émile Durkheim, um dos fundadores da sociologia, lança mão do conceito de anomia para explicar o caótico período de transição pelo qual passava a Europa no século XIX. Nenhuma transição histórica ocorre sem crise. As instituições tradicionais perdem sua força normativa, as regras sociais começam a ser contestadas e não há uma autoridade com poder suficiente para promover a coesão social. Para Durkheim, que era um otimista defensor do ideário liberal, a situação era passageira. Ele acreditava na consolidação da sociedade capitalista que, por seu turno, promoveria uma integração tão forte entre os indivíduos que nenhum outro tipo de organização econômica havia conseguido.
Não quero focar no otimismo liberal do sociólogo francês, o objetivo da introdução é apenas elucidar o conceito de anomia que de modo inevitável surge em minha mente todas as vezes que assisto o noticiário ou tenho acesso às informações que são veiculadas pela mídia. A impressão que fica é que, à semelhança da época de Durkheim, estamos vivendo numa sociedade anômica. Não preciso relatar aqui as inúmeras barbaridades que os meios de comunicação se encarregam de nos colocar a par, tirando o máximo proveito da nossa sincera preocupação com o estado do mundo ou da nossa curiosidade mórbida.
Quanto mais sensacionalista e apelativa for uma matéria jornalística, maior público alcançará, como se o ato criminoso em si não fosse mais suficiente para nos deixar indignados. Digo isso porque temo que estejamos perdendo nossa sensibilidade. Em um trecho de seu livro Ensaio sobre a cegueira, José Saramago exemplifica bem o que estou tentando dizer. Ele observa:
[...] se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim simplesmente, e confiar que o horror do ato, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras demais, Quero dizer que temos sentimentos de menos. (grafia do autor)
Se, por um lado, os meios de comunicação cumprem a importante função de denunciar, por outro, eles contribuem para propagar o pessimismo, a sensação de insegurança e, pior que isso, ajudam a banalizar atos que devem ser veementemente repudiados pela sociedade. Estes são alguns dos efeitos colaterais do excesso de informação que recebemos. Não sem razão, o relativismo se acentua, temos dificuldades em estabelecer os limites entre certo e errado e somos tomados por uma apatia crônica.
Embora, às vezes, eu tenha a sensação de que as coisas estão fora de controle, penso que tal sensação não condiz com a realidade. As estruturas sociais estão cambiantes, mas conseguem manter uma certa ordem. Todavia, se não mudarmos de direção, acredito que num futuro bem próximo podemos sofrer a mais grave conseqüência da nossa falta de comprometimento com a situação atual: um retrocesso generalizado no processo civilizador. E isso pode se manisfestar de duas formas. A primeira é a instauração da barbárie como resultado da frouxidão das normas de convivência social. Os recorrentes crimes que ocorrem em instituições escolares da adoecida sociedade estadunidense é uma pequena amostra do que poderá acontecer em proporções bem maiores se algo não for feito. A segunda é a barbárie legitimada por ideais fundamentalistas. Ora, uma sociedade anômica clama por ordem. Dessa forma, qualquer líder que acene com a possibilidade de segurança pode ganhar facilmente a adesão daqueles que anseiam por alguém que seja capaz de lhes dizer o que está errado e como esse mal deve ser combatido. Assim, tudo se torna válido em prol do objetivo maior de colocar as coisas no seu devido lugar. Os maiores crimes da humanidade foram cometidos sob esse pretexto.
O prognóstico delineado não é nada bom, mas as coisas não precisam acontecer dessa maneira. Podemos construir um mundo que seja mais aprazível para todos. A única revolução de que necessitamos deve acontecer dentro de cada um de nós para vencermos a alienação que nos faz valorizar o supérfluo em detrimento daquilo que realmente importa: o ser humano. A valorização do homem exige atitudes concretas. Quando nos envolvemos com causas significativas, quando não nos isentamos da responsabilidade de educar nossos filhos, quando somos comprometidos com princípios éticos, contribuímos de forma efetiva para que o futuro seja, de fato, mais promissor do que o momento presente parece indicar.

7 comentários:

Unknown disse...

Certamente toda as vezes que a humanidade perde seus valores, damos um passo para trás. Não adianta termos chegado a lua, descobrir cura a para diversas doenças senão respeitarmos o bem maior: A VIDA, e em todos seus sentidos e vivências. É urgente o resgate dos valores humanos, caso contrário,que geração formaremos?

macloys disse...

Sempre que me indisponho no contato com a mídia, penso na necessidade dessa revolução do eu, a busca da elevação, mas penso também em como combatê-la (a mídia); pra isso as vezes desconsiderando toda a elevação que eu poderia atingir fora do confronto...

Existiria uma medida necessária de egoísmo numa sociedade mais fraterna e de equidade?

Janete Rodrigues disse...

Você tem razão Renato, uma organização social entra em colapso quando interesses individuais se sobrepõem aos interesses da sociedade. O processo de individualização nos trouxe a um estágio limite. Se não revermos o percurso, os danos podem ser bem maiores do que aqueles que já temos visto. Obrigada pela visita.

Abraço,

Janete

Janete Rodrigues disse...

Macloys, penso que para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, não precisamos do despojamento total do "eu". O amor para com o outro pressupõe o amor para consigo mesmo, é isso que aprendemos nas palavras de Cristo. Eu prefiro "Ele" à Camus...rs*

Fiquei feliz com sua visita. Obrigada.

Abraço,

Janete

Leandro disse...

Ótimo blog, parabéns!
Saudações a você Janete.

irineu xavier cotrim disse...

gostei muito destas reflexões tanto é que escrevi alguns textos que resolvi publicar no que me desarticulo de indignação e agonia com as mudanças de valores e falta de rumo projetado por aqueles que pensam que pensam e desencaminham.

Anônimo disse...

Uau !
Penso exatamente assim !
Espero que a mídia jornalística, arauta do apocalipse, não venha a ser a responsável direta por um eventual caos generalizado... que surjam pessoas responsáveis que veiculem lucidez, ao invés do puro sensacionalismo !

Parabéns pelos excelentes textos !

Nicotine