A leitura de "A insustentável leveza do ser" é
uma experiência fascinante para aqueles que estão aptos a mergulhar na
profundidade de todas as questões existenciais trazidas pelo autor. O enredo
possui uma característica fundamental de todo bom texto, nos faz pensar. Assim,
o fascínio que provoca não deve ser confundido com o prazer simples que um
livro qualquer possa nos trazer. Aliás, aludindo à dicotomia, leveza/peso, que
é o eixo da narrativa, digo que não é uma sensação de leveza que toma conta do
leitor ao fim da história. Kundera nos convida para uma reflexão sobre a vida
da qual seria bom que ninguém saísse ileso. A narrativa tem como ponto de partida o autor
evocando a idéia do eterno retorno de Nietzsche. Não sem razão, já que é a
filosofia nietzscheana que melhor traduz o espírito da época que vemos
manifesto nos personagens, especialmente, Tomas e Sabina. O eterno retorno não
deve ser entendido como o processo cíclico da história. É um mito e, por
negação, pretende mostrar que a vida é uma só, essa é a sentença que pesa sobre
os homens: “uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida
é como não viver nunca”. Vive-se sem saber se as decisões tomadas são realmente
as melhores, não tivemos outras vidas para comparar. Não poderemos fazer certo
da próxima vez, porque não haverá uma próxima vez.
O romance tem como cenário a ocupação da
Tchecoslováquia pela Rússia no ano de 1968, como contra-golpe à abertura
democrática que fora proposta pelos intelectuais tchecos no movimento que ficou
conhecido como a “ Primavera de Praga”. O sonho comunista tornou-se um
pesadelo. É sob esse pano de fundo histórico que nos são apresentados Tomas,
Tereza, Sabina, Franz e Simon. Tomas é um médico divorciado, cujo modo de vida
consiste em não se apegar a nada. Seu objetivo é uma vida leve. Daí não sofrer
com remorsos ao abrir mão da presença do filho, Simon, e de romper com seus
pais que censuravam tal atitude. Entretanto, a leveza é ameaçada por Tereza,
garçonete do interior, por quem, por uma série de casualidades sucessivas,
acaba se apaixonando. Casa-se com Tereza, mas não abre mão de sua forma de
viver, mantém casos extraconjugais, dentre os quais, destaca-se sua relação com
Sabina, artista plástica que, assim como Tomas, não vê o mundo com o olhar dos
crédulos. Na Suíça, lugar para o qual emigrou depois da ocupação russa,
Sabina conhece Franz, mantém um caso com ele, mas não suporta o fato de que
este possa, com seu amor, por abaixo a vida segura que construiu baseada numa
visão cética da humanidade. Para Sabina, o que impera no mundo é o kitsch ,
a cegueira, a ilusão das ideologias que inculcam a possibilidade de um paraíso
na terra; que negam a existência da “merda”.
Tomas e Sabina representam todos aqueles que têm os
olhos abertos para enxergar que os ideais defendidos, inúmeras vezes com
derramamento de sangue, não passam de artifícios para enfeitar a vida. Essa é a
função do Kitsch, servir como um arremedo estético. Eles tipificam o
indivíduo que vive no mundo desencantado, enunciado por Max Weber. O mundo que
superou, por meio da racionalidade, o pensamento religioso. Contudo, o
esclarecimento também é mito, como afirmam Adorno e Horkheimer, portanto, as
raízes do desencantamento são mais profundas e o resultado disso é a frustração
e, por conseguinte, o pessimismo. Perde-se a fé em Deus, na ciência e o que resta
é apenas o que podemos fazer com nossa breve trajetória aqui, que Kundera, com
seu niilismo, condena à falta de qualquer sentido.
Penso que, à semelhança das personagens, precisamos
abrir os olhos, admitir que a vida é exatamente isso aí que nos está posto; a
vida é sobretudo aquilo que se passa dentro de nós. Este é o lugar onde se
desenrola o enredo particular da nossa existência. A aceitação da vida implica
a aceitação da impossibilidade de construir um paraíso na terra. O paraíso não
é mais o nosso lugar nesse mundo, fomos expulsos de lá, não podemos voltar sem
que Deus nos permita, não podemos reconstruí-lo, pois é obra do Criador. Se o
ser humano não fosse tão pretensioso, talvez pudesse compreender isso e, então,
cessariam, ou pelo menos, diminuiriam muito os motivos para a guerra, para as
lutas pelo poder e, como consequência, teríamos menos injustiças, menos
desigualdades e mais respeito pelo outro. A ânsia pela vida nos faz viver
menos. Acredito que é isto que Jesus quis dizer quando proferiu as seguintes
palavras: “Aquele que perder sua vida, achá-la-á, mas aquele que ganhar a sua
vida, perdê-la-á”. Ao contrário do que Kundera propõe em sua obra, é preciso
ter esperança. Enxergar e entender a vida não significa curvar-se
diante do imponderável. Ninguém foi capaz de dissecar tão bem a inutilidade das
nossas preocupações como Cristo e, ao mesmo tempo, conferir sentido a nossa
existência.
O autor-narrador afirma que a vida não é nada, não é
sequer um esboço, já que não poderá ser passada a limpo, mas creio
que a vida não se limita à contingência espaço-temporal na qual os
céticos a encerram. Ouso sentenciar, baseada na fé que deposito nas palavras do
Cristo, que estamos ensaiando. A verdadeira vida ainda está por
começar. Sei que a história do cristianismo também é marcada pela tentação
do Kitsch, seja no catolicismo, protestantismo, ou em qualquer outra
vertente cristã. No entanto, precisamos fazer um esforço para não
confundir o que Jesus ensinou com muitas coisas que ensinam em nome d’Ele. Talvez
seja justamente por causa dessa confusão que muitos de nós preferimos dar
ouvidos à Nietzsche e seus porta-vozes. Ainda que eles tenham o que dizer, e
não devamos ter medo de ouvi-los, é necessário entendermos o limite de
suas contribuições. Conheci o niilismo, experimentei a vida sem
esperança, não gostei. Prefiro a vida que tenho agora, ela é iluminada, não
pela razão arrogante da modernidade, não pelo fanatismo religioso, mas pela
consciência da graça. Entregar nossos fardos a Deus é o único modo de vivermos
uma vida verdadeiramente leve.
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