quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Homem em "Os sertões" de Euclides da Cunha*

Constando sempre nas listas dos melhores livros da literatura mundial, Os sertões de Euclides da Cunha é uma obra que não pode ser limitada a uma área específica do conhecimento.  Trata-se, ao mesmo tempo, de um  registro histórico e etnográfico com uma narrativa épica primorosa. Está dividido em três partes principais: A Terra, O Homem e A Luta. O resumo que se segue restringe-se a segunda parte, “O Homem”, com ênfase no movimento messiânico liderado pela antológica figura de Antônio Conselheiro.
 Euclides da Cunha inicia apresentando os três tipos antropológicos que constituem a  base racial da qual deriva diversas sub-raças brasileiras. Ele manifesta  preocupação com essa mistura que, conforme os pressupostos evolucionistas que o influenciavam, enfraquecia os seres humanos. Assim, quanto menos miscigenação houvesse, mais vigorosos seriam os homens tanto física como   moralmente.
O indígena é o  primeiro tipo apresentado. Os silvícolas encontrados aqui, à época do descobrimento,  eram, de acordo com Cunha,  originários de raças autóctones que habitavam o continente americano. O segundo tipo, o negro, o mais subjugado e desprotegido entre os três. E, por fim, o português responsável pelo gens aristocrático do povo brasileiro, seu elo com a civilização.  Para o autor, não faz sentido a discussão sobre qual dentre as três raças seria  predominante porque a tendência é de uma miscigenação contínua, dando origem a  sub-raças, impossibilitando, dessa maneira,  a unidade racial. O único meio desse povo biologicamente enfraquecido sobreviver é progredindo socialmente, já que o progresso físico estava comprometido.
 Cunha associa, como era comum naquele período, o desenvolvimento ou não  de determinadas habilidades físicas ao meio geográfico. O clima e o relevo seriam elementos determinantes na formação dos habitantes de uma região específica. Para evidenciar nossa composição  heterogênea, ele destaca  duas sub-raças,   mulata e  sertaneja,  cujas características singulares são contrapostas e  diretamente vinculadas   ao meio ambiente na qual foram forjadas, uma no litoral e outra no sertão.
 Ele trata primeiramente do mulato, cuja  gênese está fora do país. Embora  a mistura entre branco e  negro já acontecesse em  Portugal, no Brasil, ela ganhou uma dimensão irreversível. O autor põe ênfase na subordinação cruel imposta aos africanos a ponto destes serem percebidos em relação de  equivalência valorativa com um  animal de carga. Aqui, os negros foram debilitados pelos grilhões e pelos desejos lascivos dos brancos. O mulato brasileiro  surge quebrado pela servilidade dos negros e contaminado pelos vícios dos brancos, tornando-se, segundo Cunha,  o tipo característico do litoral.  
O segundo tipo é o sertanejo, cuja origem remonta aos desbravadores bandeirantes  oriundos de São Paulo e sua mistura com os indígenas. Por ser uma sub-raça  mais pura, é  também mais forte.  O homem do sertão é apresentado sob três espectros: o jagunço, o vaqueiro e o gaúcho. Os três são vigorosos, mas  o jagunço se sobressai porque é mais tenaz e mais resistente. Nas palavras de Cunha, os sertanejos eram retrógrados, mas não degenerados como os habitantes do litoral.  O isolamento fez com que tivessem hábitos próprios e grande apego às tradições, com destaque para o  sentimento religioso levado até o fanatismo.  O sertão era, portanto, um lugar propício para que uma figura  como Antônio Conselheiro encontrasse interlocutores.
O sertanejo é, por suas  contingências existenciais, pouco desenvolvido psiquicamente, por conseguinte, sua forma de cultivar a religiosidade era despida de conteúdos racionais mais elaborados. O autor define sua religião como mestiça, fundada, entre outras coisas,  sobre um monoteísmo incompreensível. Incorpora elementos de religiões,  narrativas  e práticas distintas: “o antropismo do selvagem, o animismo do africano [...] e o aspecto emocional da raça superior na época do descobrimento” (CUNHA, 1984: 80). 
Distantes da civilização e da sua modernidade secularizada, os sertanejos tinham suas vidas marcadas pelas crendices e superstições. Sua sobrevivência estava vinculada  exclusivamente à terra. Essa situação de vulnerabilidade tornava-os propensos  a buscar auxilio no sobrenatural.  Daí, estarem sempre prontos a seguir os messias que apareciam naquelas paragens inóspitas e esquecidas. Diante das necessidades imediatas dos sertanejos, o catolicismo dos primeiros missionários, com sua ênfase no transcendente, não poderia prevalecer soberano sobre a magia dos africanos e dos indígenas.  Com o tempo,  os missionários não só se  dobraram à religiosidade mágica daquele povo como também se tornaram seus fomentadores. Conforme Cunha, eles destruíam, apagavam e pervertiam tudo que foi ensinado pelos primeiros evangelizadores. Usavam a credulidade dos ingênuos para os dominar.  O  temor que lhes inculcavam era  tão grande que os tornavam facilmente manipuláveis.
Não sem razão, Antônio Conselheiro, com sua “tranquilidade, altitude e resignação soberana de apóstolo antigo” (CUNHA, 1984:86),  conseguiu  cativar de imediato a atenção desse  povo sofrido. Sua insanidade e atavismo eram bem convergentes com as expectativas daqueles sertanejos de mentes obscurecidas. Conselheiro era, segundo palavras do autor, um gnóstico bronco que “aceitou”  a missão de apontar o caminho para pecadores.
Euclides da Cunha atribui à herança familiar, a  predisposição belicosa do líder religioso, embora este tenha sido descrito como tranqüilo e tímido na juventude.  O fato que desencadeou a manifestação das características latentes teria sido o adultério da sua esposa. Após o fatídico episódio, ele  abandona sua terra natal, Quixeramobim no Ceará, vai para  o Sul do Estado e desaparece, reaparecendo dez anos depois na Bahia, já com sua aparência de profeta e envolto por  lendas. A disciplina de asceta, com todas as suas dores e misérias, legitimava sua santidade e atraía cada vez mais seguidores.  Agindo como um profeta veterotestamentário,  põe-se a denunciar e a combater  o poder estatal e sua república,  e o poder  eclesiástico representado pela Igreja Católica que, segundo suas palavras, tornara-se serva de Satanás.  Seu discurso era escatológico, os seguidores deveriam se desapegar de todas as coisas mundanas porque o fim estava próximo.
 A crescente influência do asceta fez com que as autoridades instituídas, insufladas principalmente pelas exigências dos padres, tomassem providências. Uma primeira expedição, não com mais de duzentos homens, fora enviada para acabar com os insurgentes.  Naquele sertão castigante, os rebeldes venceram utilizando, principalmente, os obstáculos naturais que lhes eram tão familiares.  Contudo,  Conselheiro sabia que a vitória era apenas o prenúncio de batalhas mais difíceis. O líder e seus seguidores vão para Canudos, uma fazenda transformada em vilarejo. Com a chegada dos rebeldes em 1893, o lugar obscuro revive e cresce rapidamente sob a força do carisma do Beato que atraía pessoas de todas as cidadelas daquela redondeza.   O efervescente povoado de Canudos, com sua arquitetura rudimentar, torna-se, então, o local sagrado, protegido das maldições que assolam o mundo externo. Ali instaurou-se uma forma de religiosidade modelada conforme as diretrizes do profeta do sertão, cujo arbítrio fez com que se estabelece naquela comunidade um organização social quase clânica.  No entanto, a rigidez de Conselheiro, expressa em duras penitências, não impediu os sertanejos de levarem a termo seus desejos carnais. O sinal mais evidente disso são os filhos espúrios que nasciam. Se, por um lado, o líder  não deixava de condenar o comportamento dos seguidores como pecaminoso, por outro, tolerava-o.
Os melhores discípulos, por mais contraditório que possa parecer, eram aqueles que tinham suas vidas marcadas pelo crime. Estes ajudavam a fortalecer  a autoridade de Antônio Conselheiro e expandir seus domínios. À medida que o movimento crescia, aumentava também o desejo de  mostrar que Deus estava com eles, assim, empreendeu-se a construção de uma nova igreja, bem diferente da capela que fizeram outrora. O novo templo, projetado pelo próprio líder,  surgiu imponente diante daquela arquitetura precária do arraial.
 Euclides da Cunha encerra a segunda parte narrando o episódio em que a Igreja Católica envia alguns clérigos para tentar demover o movimento e implantar uma missão no povoado.  Embora tivessem permanecido por um tempo e realizado alguns sacramentos, os representantes da Igreja Oficial foram veementemente rejeitados. A fidelidade dos sertanejos ao Beato era inabalável e os fizeram resistir até a morte, certos de que encontrariam do “outro lado” o paraíso.


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*Resumo feito para a disciplina “Estado e Religião” do doutorado em Sociologia da Universidade de Brasília


 Referências Bibliográficas

CUNHA, Euclides. O Homem. In: Os Sertões. São Paulo: Três, 1984.