quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Em defesa de uma existência plena

“Por que amar, se perder machuca tanto? Eu não tenho mais respostas: só a vida que eu vivi. Duas vezes nessa vida foi me dada a escolha: como um garoto e como um homem.O garoto escolheu a segurança, o homem o sofrimento. A dor de agora faz parte da felicidade de então. Esse é o trato.”

O mundo moderno, guiado pelos postulados do iluminismo, exaltou a razão, a capacidade transformadora do homem e tomou para si a missão de lançar os fundamentos de uma sociedade livre, fraterna e igualitária. A ciência assumiu uma posição de absoluta primazia por um bom período de tempo em detrimento da religião que passou a ser associada ao “infantilismo da humanidade” por Freud, à idéia de “alienação” por Marx e a outras concepções antropocêntricas cujo ápice foi o decreto da “morte de Deus” por Nietzsche.
Contudo, o avanço técnico-científico revelou, especialmente por meio das duas grandes guerras mundiais, que tem seu lado sombrio. Segundo Giddens, a possibilidade criada pela ciência de dizimar populações inteiras por meio das armas de destruição em massa nos colocou sob risco iminente que, por sua vez, gerou uma espécie de incerteza na sociedade contemporânea. Ao contrário do contexto iluminista, vivemos uma época de pessimismo. O homem de hoje não olha para o futuro. Daí o menosprezo com que os governantes e a grande maioria das pessoas tratam os alertas acerca dos perigos que o desrespeito ao meio-ambiente representa.
Entre as conseqüências da frustração que as promessas não cumpridas do iluminismo provocaram, quero destacar a emergência de uma sociedade hedonista que é, por seu turno, reflexo de um tempo em que a esperança deixou de existir ou, na melhor das hipóteses, tem sido direcionada para coisas que jamais poderão trazer satisfação perene ao ser humano, resultando, portanto, em maior frustração.
Ser feliz é o imperativo do capitalismo de consumo vigente, por conseguinte, é o desejo hedonista de uma existência sem sofrimento que orienta a conduta e transforma as relações em um culto à superficialidade. O sofrimento deve ser evitado a qualquer custo, predominando a exigência de alívio imediato para as dores da vida. O problema, entretanto, é que por mais que nos esforcemos para ignorá-lo ou suplantá-lo por meio de fórmulas químicas ou através das receitas dos livros de auto-ajuda, ele não pode ser eliminado, pois é elemento constituinte da existência humana.
C. S. Lewis – escritor cristão que ficou mundialmente conhecido pela Série Nárnia – elegeu o problema do sofrimento como um de seus temas principais. No livro autobiográfico Surpreendido pela Alegria, ele confessa que mais do que buscar a felicidade, se esforçou para não sofrer. Para isso, optou por uma vida sóbria de solteirão convicto. Abrir-se para o amor seria se por em risco desnecessário. Entretanto, as coisas não correram do jeito que ele planejara.
O filme Terra das sombras, estrelado por Anthony Hopkins e Debra Winger, mostra o bendito fracasso de Lewis. Ele estava com mais de cinqüenta anos quando conheceu Helen Joy Dadviman, uma poetisa norte-americana. O amor entrou sorrateiramente no coração do escritor, mas ele só foi capaz de admitir isso quando descobriu que Helen estava com câncer.Vencido pelo sentimento, casa-se com ela. Fica evidente que jamais experimentara tamanha felicidade, mas, ironicamente, nunca havia sentido tamanha apreensão, já que o prenúncio da dor que havia de experimentar sombreava sua felicidade. Em um dos mais significativos diálogos do filme, a poetisa toca no assunto de sua morte, Lewis responde que não queria falar sobre isso, Helen então argumenta que ele precisava saber que a dor que iria sentir depois era parte da felicidade que estava sentido naquele momento.
Ora, a esposa de Lewis estava dando a definição exata do que é felicidade. Ao contrário do que muitos pensam, felicidade não é ausência do sofrimento, mas é a capacidade de reconhecer o que temos de bom no tempo presente, ainda que o bom não exista em estado puro. Ou seja, a existência plena, implica numa aceitação consciente do absurdo que é a vida, com seus bons e maus momentos.
Pode parecer paradoxal, mas a busca desenfreada por prazer tem o poder de colocar ênfase sobre o que é ruim. Isto porque, o prazer é efêmero, mas o vazio que o sucede torna-se constante. Então, vemos pessoas em um ciclo vicioso ansiando por uma felicidade que nunca está aqui, mas sempre lá e, em nome dela, estão sempre dispostas a sacrificar o bem-estar de outras pessoas. Afinal, o egoísmo, a cobiça, as traições, tudo é justificado, porque “eu tenho a obrigação de lutar pela minha felicidade”. Lamento informar que os que lutam para ser felizes não o serão nunca. Felicidade não se consegue por esforço. Ela é um estado de alma sustentado pelo sentimento de gratidão, pela disposição de perdoar, pela competência para rir de si mesmo e, acima de tudo, ela resulta da coragem de nos abrirmos para o outro através do amor, à exemplo do que Lewis fez, mesmo que isso nos faça sofrer profundamente. Se não for assim, não poderemos dizer que vivemos a vida plenamente.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Capitalismo de consumo e reificação do homem: denúncia e convite para que resgatemos nossa humanidade



A modernidade surge sob a égide de um novo modo de produção que, por sua vez, é um dos fatores que mais suscitaram mudanças na cultura ocidental. O homem, a partir de então, começa a ser percebido como indivíduo autônomo, sujeito de si mesmo e da história. A expectativa era de que a razão conduziria a humanidade a um futuro glorioso. Livre da tutela da religião, com a perspectiva de controle total da natureza através da ciência, a construção de uma sociedade perfeita era apenas uma questão de tempo.
O otimismo em relação ao homem e ao futuro da humanidade sofreu golpes fatais. Entre os mais relevantes está o desmascaramento do sistema capitalista por Karl Marx. Não sou comunista, não nos moldes do marxismo, mas isso não me impede de reconhecer que, em pelo menos um aspecto de suas investigações, o pensador alemão estava certo. No capítulo “A mercadoria” de O Capital, ele procura mostrar que de todos os males que o capitalismo trouxe o mais nocivo é o processo de reificação do ser humano. Isso significa que na engrenagem da economia liberal, os trabalhadores foram transformados em peças, existindo para o objetivo único de produzir mercadorias, estas sim, são as verdadeiras protagonistas do novo sistema.
Desde o período histórico pesquisado por Marx, o modo de produção capitalista passou por diferentes fases, mostrando uma capacidade impressionante de adaptação, evitando assim – ou pelos menos retardando - que a profecia marxiana de um colapso se cumprisse. É bem verdade que muitos países conseguiram alcançar um nível satisfatório de riqueza e distribuição de renda, especialmente, através do welfare state das sociais democracias. Mas, também é verdade que para que esses países continuem ricos é preciso que outros permaneçam pobres. A lógica do capitalismo é o acúmulo, portanto, para que alguns fiquem com muito, outros precisam ficar com pouco ou com quase nada.
Contudo, não é sobre o prejuízo material que desejo colocar meu enfoque. O que me assusta é constatar que o capitalismo avançado da sociedade contemporânea está conseguindo, com êxito, completar o processo de desumanização do homem. Por um lado, fomos transformados em consumidores insaciáveis e, por outro, em objetos de consumo. A evidência disso é a forma que as relações sociais assumem em nossos dias. Com que facilidade as pessoas são usadas e descartadas, como se não fossem nada além de corpos que podem, por um tempo, proporcionar prazer ou trazer algum tipo de benefício! Existe uma tendência de não percebermos as pessoas como seres integrais, mas apenas como invólucros, assim, não precisamos ter cuidado para não magoar, não ferir. Como é o corpo que é valorizado, nos tornamos vítimas- particularmente as mulheres- de uma luta ensandecida por um padrão estético inatingível para a maioria. A frustração e a baixa auto-estima são alimentadas, dia após dia, pelas revistas, outdoors, televisão e toda forma de veículo de comunicação. Obviamente, o sistema lucra bilhões com essa busca desenfreada pelo corpo perfeito e com a batalha sem trégua contra o envelhecimento.
Em seu livro Ensaio sobre a cegueira, José Saramago, metaforicamente, faz uma alusão muito apropriada à sociedade contemporânea. Vivemos uma epidemia de cegueira, não somos capazes de enxergar que por traz de cada rosto, de cada corpo, existe um ser humano com uma história, alguém fervilhando de sentimentos, que deseja, acima de tudo, ser visto como pessoa humana, reconhecido, amado incondicionalmente. O autor mostra que nossa cegueira é de difícil diagnóstico porque não a percebemos. Se nos tornássemos fisicamente cegos, quem sabe, poderíamos então ver nos outros aquilo que realmente interessa.
A obra de Saramago é um convite para que resgatemos nossa humanidade. Não acredito que isso vá acontecer à curto prazo, pelo contrário, penso que ainda levará muitos anos para começarmos a reverter esse processo. Todavia, permanece o consolo de saber que nessa sociedade de cegos existem, à semelhança da mulher do médico – personagem do livro – pessoas que não perderam sua visão. Entretanto, para enxergar além, para ter percepção, é cobrado o alto preço da dor de saber, sem dispor, contudo, do poder necessário para transformar de modo imediato. Isso, por vezes, gera um sentimento de inadequação que pode arrefecer a determinação daqueles que enxergam e fazê-los desejar gritar: "Pare o mundo porque eu quero descer!" Mas sabemos que a vontade de desistir é apenas momentânea. São fortalecidos pela idéia, ainda que utópica, de que de alguma forma podem contribuir para a construção de uma sociedade que seja, de fato, composta de seres humanos que se reconhecem como tais.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Sobre a Teoria da Estruturação de Anthony Giddens



Seguindo a tendência da sociologia contemporânea, Giddens procura, com sua teoria da estruturação, resolver o problema da dicotomia indivíduo e sociedade e, por conseguinte, do antagonismo teórico-metodológico derivado de tal dicotomia. De um lado, temos o objetivismo, postulado pelo funcionalismo e pelo estruturalismo, propondo, à semelhança das ciências naturais, leis que regem os fenômenos sociais, determinando a ação dos indivíduos. Por outro lado, temos as teorias interpretativistas, para as quais, são os indivíduos e o sentido que estes atribuem às suas ações que interessam. Para superar tal antagonismo, Giddens propõe uma síntese teórica que conjuga estrutura e ação.
Na teoria da estruturação, as ações dos indivíduos são dotadas de consciência e intencionalidade, embora estes não tenham domínio total das condições e das conseqüências dos seus atos, já que alguns resultados não são previstos. Nesse sentido, a história, construída pelas atividades intencionais dos indivíduos, não acontece de forma premeditada, mas resulta do desejo de buscar uma direção consciente para as ações, ainda que as conseqüências de uma determinada ação possam não ser àquilo que se intencionou originalmente. Dessa forma, vê-se em Giddens uma percepção episódica da história, rejeitando, assim, a noção de leis que governam o processo histórico. A vida social possui regularidades, mas não são naturais, são regularidades reflexivas.
Para sistematizar sua teoria, Giddens define o conceito de estrutura como um conjunto de regras que, segundo o autor, são inerentemente transformacionais, e de recursos utilizados na reprodução social. Tais regras são de dois tipos: elementos normativos e códigos de significação. Os recursos também são classificados em duas espécies: recursos impositivos, resultantes da coordenação da atividade dos agentes, e recursos alocativos, provenientes do controle de produtos materiais ou de aspectos do mundo material. A noção de estrutura é primordialmente processual. Diz respeito, em análise social, às propriedades de estruturação que permitem práticas sociais semelhantes e, por conseguinte, recorrentes, por dimensões variáveis no tempo e no espaço.
Para Giddens, a estrutura é apenas uma “ordem virtual” Assim, os sistemas sociais, que compreendem as a atividades dos agentes humanos, não possuem estruturas, mas propriedades estruturais que, por seu turno, são o que há de mais estável e permanente nas sociedades. As propriedades estruturais mais profundamente enraizadas, implicadas na reprodução de totalidades sociais, são chamadas de princípios estruturais.
A dualidade da estrutura -propriedades estruturais dos sistemas e ação- possui papel central para a construção teórica giddesiana, que não admite oposição. A estrutura é, concomitantemente, restritiva e facilitadora. Não deve ser entendida como externa aos indivíduos, no sentido proposto por Durkheim.
O conceito de ação social é fundamental na teoria de Giddens. O autor caracteriza a ação social por meio de três atributos: racionalidade, reflexividade e intenção. A primeira implica que agir socialmente é agir com certo grau de racionalidade, não sendo, portanto, simples ato mecânico. A segunda, reflexividade, diz respeito à capacidade dos indivíduos de serem sujeitos e objetos de sua própria vida. Por fim, a intencionalidade, que é o elemento não premeditado na ação. Embora a ação seja direcionada por um objetivo, há elementos da intencionalidade que acontecem de forma indireta ou não premeditada.
A dinâmica da interação social pode acontecer de dois modos: face a face, situações de co-presença, e de forma sistêmica que diz respeito às relações recíprocas entre agentes que estão fisicamente ausentes. O poder seria uma característica intrínseca da vida social, não sendo necessariamente, repressivo ou opressor. Nas práticas sociais os indivíduos são constituídos também na dimensão do poder. Tais indivíduos podem agir em duas esferas: institucionalmente ou particularmente. Na esfera institucional, os indivíduos agem de acordo com os sistemas abstratos, não havendo exigência de uma presença física. Em tal esfera, as transformações só podem ocorrer através da ação coletiva dos agentes. Na esfera particular, ações são ações do cotidiano, em contextos de co-presença, pelas quais, os agentes interferem diretamente no meio social.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Gênese e Desenvolvimento do Protestantismo em Max Weber


A contribuição de M. Weber (2000) para compreendermos o surgimento e o avanço do protestantismo é imprescindível. Ainda que não tenha se proposto elaborar uma história desse fenômeno religioso, é ele que, ao desejar encontrar um exemplo histórico da existência de um vínculo entre o comportamento ético-religioso e transformações na esfera econômica, oferece-nos uma visão mais abrangente da religião protestante. O exemplo buscado, foi fornecido pela civilização ocidental com seu modo de produção capitalista e a orientação ética do protestantismo.
Nesse sentido, o desenvolvimento do Ocidente ocorreu com ajuda significativa de uma nova perspectiva difundida pela Reforma Protestante, sobretudo, na sua vertente calvinista, cujo corpo doutrinário exige uma mudança efetiva na vida do fiel que deve ser exteriorizada através do cumprimento zeloso da vocação para a qual cada um foi chamado, tendo em vista a salvação. O propósito único da vida é aumentar a glória de Deus aqui na terra, e isto deve ser feito individualmente. Aí percebemos uma ruptura com o cristianismo medieval onde o enfoque é colocado sobre a comunidade e não sobre o indivíduo. Isto fez com que a nova instância religiosa estivesse mais apta a atender as reivindicações de autonomia que surgem com o mundo moderno.
No pensamento weberiano, a esfera religiosa é essencial no processo de racionalização, explícita em alto grau no protestantismo. A afinidade com o capitalismo se dá precisamente por esta característica da ética protestante, em especial, a ética calvinista que com sua ascese intra-mundana desenvolve o senso do impessoal e do desapego ativo convergindo, assim, com a “impessoalidade da racionalidade cientifica e técnica” (Signore, 1993, p. 116) própria da modernidade. Por meio da investigação de Weber temos um panorama do ethos protestante e sua importância no estabelecimento e legitimação de uma nova ordem social. O sociólogo alemão procura mostrar como o sentido, encontrado por muitos na teodicéia calvinista, foi o responsável para que estes assumissem uma postura ético-moral que auxiliou na consolidação do modo de produção capitalista.



SIGNORE, Mario. Ética religiosa e racionalidade moderna. In: PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (Orgs.) Deus na filosofia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 15 ed. São Paulo: Pioneira, 2000