Por meio da arte, particularmente representada pelo quadro de Antoine Watteau, Embarque para a Ilha de Citera, Norbert Elias, em seu ensaio A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor, faz uma análise do processo de mudança social que vai do Antigo Regime francês, encabeçado pelo Rei-Sol Luis XIV, até início do século XX. A ilha de Citera, enunciada na obra, era símbolo de uma imagem do desejo, uma utopia secular, o lugar onde o amor poderia ser vivido plenamente sob as bênçãos da deusa do amor. O revigoramento do mito na modernidade evidencia o vínculo não rompido entre a antiguidade e o nosso tempo.
O quadro seria reflexo de um período de transição, no qual os súditos do velho rei ansiavam pela libertação de seu governo opressor. Quando Watteau faz os primeiros rabiscos da obra, trabalho que deveria ser elaborado como requisito resultante de sua admissão na Academia Real, em 1712, o rei estava idoso e doente. Ao concluí-lo, em 1717, o rei já havia falecido.
Segundo Elias, o clima sombrio da época de Luis XIV juntamente com o clima festivo da regência de Luis XV podem ser percebidos no quadro, que evidencia também a passagem do estilo austero do barroco para o alegre e frívolo rococó. O pintor era, como a maioria dos artistas da época, proveniente de uma família de classe inferior, e conseguiu ascensão por meio do patrocínio da aristocracia de corte que, por sua vez, era quem ditava as regras do gosto artístico.
Entretanto, com a ascensão da burguesia, cujo marco decisivo foi a Revolução de 1789, a classe artística se vê livre da tutela da nobreza e pôde, então, se auto-declarar especialista em questões de bom gosto. Nota-se, assim, uma gradativa transformação no sentido de que não é mais o público consumidor que determina a produção artística, mas é o artista que passa a ditar os padrões literários e artísticos.
Durante o período imediato pós-revolução, o quadro de Watteau foi alvo de críticas e rejeitado por ser, segundo o gosto burguês, representativo de um período no qual predominava a futilidade. O rococó era, na concepção da burguesia, a expressão mais exata da superficialidade e dos excessos que devem ser superados.
Contudo, ainda que fossem lentas e encontrassem resistências das gerações mais velhas, as inovações sempre aconteciam. Assim, na segunda metade do século XIX, o quadro de Watteau foi redescoberto e transformado em objeto de culto por um grupo de livres pensadores denominado Círculo da Rue de Doyenné. O grupo ansiava, acima de tudo, reviver a época de Luis XV, com suas festas e roupas elegantes. A ilha de Citera volta à tona idealizada como o paraíso do amor.
A utopia leva Gerard Nerval, um dos principais nomes do círculo, a fazer uma viagem à ilha e, conseqüentemente, a ter um encontro com a realidade. O que presenciou não tinha nada a ver com o que fora sonhado. De acordo com Elias, a viagem de Nerval e, por conseguinte, sua frustração, é paradigmática do clima de pessimismo que se instaura no fim do século XIX. Desse modo, conclui Elias, a fantasia de Citera, assim como o quadro de Watteau, tornaram-se o ponto de partida para o problema do contraste entre o belo sonho e a dura realidade, “o predomínio das utopias ideais cede lugar às utopias do medo e da angústia”.