Não é sem razão que acredita-se que vivemos em uma democracia racial. Essa impressão de convivência pacífica ganha força especialmente quando fazemos comparações com outros países como os EUA e África do Sul, nos quais, a segregação imposta aos negros pela elite branca dominante foi marcada por um racismo explícito e brutal. Entretanto, é justamente por ser explícito que o racismo nesses países possa, talvez, ser combatido de forma mais eficaz.
Milton Santos, ao falar da diferença entre ser negro no Brasil e em outros países, denuncia que em nossa sociedade o problema do racismo é mais difícil de ser resolvido. Isso porque, aqui, a força de trabalho escrava foi, desde o princípio da nossa história econômica, “essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes”. Daí a perpetuação de uma ética conservadora, injusta e que perpetua as desigualdades. . Outro obstáculo é a incongruência entre o que pensamos ser e o que somos de fato. Afinal, enquanto não nos dermos conta de que nosso país não é o paraíso democrático ideologicamente difundido por aí, não haverá solução para a intolerância que persiste, embora de forma velada, como afirma Santos. É importante salientar que a população negra não posa de vítima passiva. O movimento de resistência teve início ainda durante o regime escravagista. A formação dos quilombos, a preservação da cultura, de modo geral, e da religiosidade africana, particularmente, permite que tenhamos uma idéia da dimensão dessa resistência.
Atualmente há um debate em torno de como podemos minimizar os prejuízos históricos que atingem os afrodescendentes. No cerne da discussão está a criação de cotas nas universidades que faz parte das chamadas políticas de ação afirmativa, que são políticas que visam ampliar o acesso de minorias a todos o setores da sociedade. É uma questão polêmica e não há consenso nem mesmo entre aqueles que seriam favorecidos. Talvez por falta de um esclarecimento maior da população brasileira, o debate tem girado em torno de uma noção do senso comum: a questão do mérito, ou seja, a crença de que todos têm que passar pelo mesmo processo seletivo, aqueles que entram na universidade devem conseguir isso por meio de esforço pessoal.
No entanto, o problema não é tão simples assim, não é questão de mérito pessoal. Seria se todos partissem de iguais condições. Não é o que acontece. Como um indivíduo que desde à infância teve que lutar pela sobrevivência, que foi condicionado a estudar nas piores escolas, que não teve acesso a uma educação mais abrangente através do acesso à livros e à outros meios de informação, pode competir com aqueles que estudaram nas melhores instituições de ensino, que tiveram o direito à infância garantido, que puderam desfrutar de vários meios de acesso a informação?
Considerando o que foi posto, poderíamos afirmar que o problema é um problema de classe e não de cor. Na verdade, trata-se de ambos. É de classe porque são as camadas mais pobres que vêem sua passagem para o ensino superior bloqueada por não poderem competir de igual pra igual com alunos das classes média e alta. É um problema de cor porque a maioria da população pobre, 60% segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), é composta por negros e pardos.
O movimento negro alega que não tem como dissociar a questão de classe da questão racial, pois são, sobretudo, os negros e os pardos as maiores vítimas da exclusão. Por outro lado, há o argumento de que o sistema de cotas é anticonstitucional porque feriria o princípio básico da igualdade de direitos. Não se pode privilegiar um grupo em detrimento de outros. O fato é que nunca houve, neste país, igualdade de direitos. A cidadania não se estende à todos os grupos sociais. Por que então usam esse argumento de igualdade quando se propõe algo pra minimizar uma injustiça de séculos? Como afirma M. Santos, nós precisamos de atitudes concretas e não de discursos que não transformam a realidade. Os defensores das cotas sabem que esta não é a melhor solução, mas argumentam que é a resposta mais imediata para um problema histórico sobre o qual todos falam, mas poucos fazem alguma coisa.