“Viver é muito perigoso”, aforismo recorrente na fala de Riobaldo,
principal personagem da saga Grande
Sertão: veredas de João Guimarães Rosa, talvez faça hoje mais sentido do
que em qualquer outra época. Quem
conhece a obra sabe que a sentença do autor não diz respeito apenas ao iminente
perigo da morte, mas sobretudo aos riscos que estamos sujeitos por sermos seres primordialmente relacionais. Portanto, ao supor que a vida, hoje, é mais perigosa do que em qualquer outro momento histórico, não tenho em mente nenhuma das grandes
ameaças a humanidade típicas do mundo contemporâneo, como armas de destruição
em massa, catástrofes naturais decorrentes do aquecimento global e outros
perigos que Ulrich Beck (1998) denomina de “riscos produzidos”, ou seja, efeitos
colaterais dos avanços técnico-científicos. Meu desejo é focar nos riscos derivados das
profundas transformações que ocorrem no modo como nos relacionamos.
Vivemos no tempo da liberdade
individual, isso significa que cada um, de modo geral, pode delinear sua própria trajetória.
Não estamos mais sob a ditadura das identidades fixas: filho de peixe
não será, necessariamente, peixinho, se cismar de ser outra coisa, não há
determinismo biológico ou social capaz de se sobrepor a isso. Os estudos de gênero estão aí para comprovar.
Tudo é fluido, como afirma Bauman (2001), assim, não sabemos mais o que esperar
uns dos outros. O que se quer agora pode não se querer mais daqui a um
instante. O verbo “ser” que remete a uma condição essencial e, portanto, perene
do sujeito, é substituído pelo verbo
“estar” que implica transitoriedade: “Eu não sou, eu estou”. Aparentemente, as vantagens dessa nova forma
de se colocar no mundo são muitas: sexualidade vivida sem limites, não estar
preso a relações insatisfatórias, experimentar tudo que tiver ao alcance e uma série de outras coisas
defendidas por aqueles que exaltam o relativo e condenam o absoluto. Contudo, não
é preciso ser um especialista para perceber que embaixo dessa superfície cheia
de cores, há uma enorme escuridão e, na escuridão, não vemos o caminho, não
sabemos para onde ir, sentimos medo, ficamos paralisados. O reino das possibilidades é, também, o reino da
insegurança e, para sobreviver nele, é preciso, mais do que qualquer coisa, de coragem.
É arriscado acreditar nos outros, investir em relacionamentos, criar expectativas.
Daí a palavra de ordem ser “curtir o
momento”. O problema é que ainda não nos tornamos seres destituídos de
sentimentos. Sempre vamos querer mais do que “curtir o momento”. Queremos relações duradouras, aprovação
sincera, afeto incondicional. Assim, nos tornamos pessoas cada vez mais
frustradas, desconfiadas e medrosas. Não sem razão temos um crescente número de
indivíduos sofrendo de algum distúrbio psicológico: depressão, transtorno
bipolar, paranóia, síndrome do pânico e muitos outros que poderiam ser elencados.
Outra conseqüência, não menos importante, são as concessões que alguns fazem para não ficarem sozinhos. A solidão talvez seja a mais
assustadora das ameaças. Nesse sentido, fica-se
com qualquer pessoa apenas para não estar só e, com isso, paradoxalmente,
estamos mais sós do que nunca. Presença física não significa estar presente
de fato
O diagnóstico não é bom, mas também
não é definitivo. Podemos fazer escolhas
diferentes destas que comumente nos são apresentadas. Nadar contra a corrente requer de nós um enorme esforço e, muitas vezes, vamos ficar
cansados. Todavia, se simplesmente nos deixarmos levar, estaremos ajudando a
construir uma sociedade onde predominam o fake,
o superficial, o transitório. De forma concreta, fazer outras escolhas
significa investir na dignidade humana; cultivar a sensibilidade para que jamais
percamos a capacidade de notar o
sofrimento que causamos e de pedir perdão por isso; investir em relacionamentos
saudáveis e, por fim, dizer “não” a
todos aqueles que insistem em nos tratar como mercadorias em estantes de
supermercado.
______________________
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia
una nueva modernidad. Barcelona:
Paidós, 1998.
6 comentários:
Adorei o texto! muito bem escrito e embasado teoricamente. Coincidentemente, andei escrevendo sobre o tema (de maneira mais informal), abordando aspectos sobre as expectativas - sobretudo das mulheres - com os relacionamentos introduzidas pela crença nos 'contos de fadas'. Os últimos dois textos do meu blog falam disso. se quiser conhecer, agradeço: www.naoestouestudando.blogspot.com
e parabéns!
Muito interessante o texto! Retrata bem o que está acontecendo com as pessoas na atualidade mesmo... Estão cada vez mais solitárias com essa mania de "não querer se apegar". Quem é um pouco mais sensível sofre muito pra encontrar seu caminho. Mas também acho que vale a pena remar contra a corrente de vez em quando.
Seguindo!
Abraços!
http://vivereler.blogspot.com/
Maravilhoso texto! Traduz muito bem as angústias da sociedade atual.
Lívia, seu texto sobre o mal causado pelo romantismo idealizado dos contos de fada é muito interessante, espero que continue amadurecendo suas ideias e compartilhando-as. Nick, que bom que existem pessoas como você que é capaz de refletir sobre as consequencias das escolhas. Carla, fico muito feliz que tenha gostado do texto. É sempre bom saber de pessoas que pensam de forma semelhante a da gente, sentimos que não estamos sós.
Obrigada a todas vocês pela visita.
Abraços,
Janete
Muito interessante e pertinente aos nossos tempos. Parabéns !
Nicotine
Olá Nicotine, sua visita me honra. Volte sempre que quiser e puder.
Abraço,
Janete
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