Constando sempre nas listas dos melhores livros da literatura mundial, Os sertões de Euclides da Cunha é uma
obra que não pode ser limitada a uma área específica do conhecimento. Trata-se, ao mesmo tempo, de um registro histórico e etnográfico com uma
narrativa épica primorosa. Está dividido em três partes principais: A Terra, O Homem e A Luta. O resumo que se segue restringe-se a segunda parte, “O Homem”,
com ênfase no movimento messiânico liderado pela antológica figura de Antônio
Conselheiro.
Euclides da Cunha inicia apresentando os
três tipos antropológicos que constituem a
base racial da qual deriva diversas sub-raças brasileiras. Ele manifesta
preocupação com essa mistura que,
conforme os pressupostos evolucionistas que o influenciavam, enfraquecia os
seres humanos. Assim, quanto menos miscigenação houvesse, mais vigorosos seriam
os homens tanto física como moralmente.
O indígena é o primeiro tipo
apresentado. Os silvícolas encontrados aqui, à época do descobrimento, eram, de acordo com Cunha, originários de raças autóctones que habitavam
o continente americano. O segundo tipo, o negro, o mais subjugado e
desprotegido entre os três. E, por fim, o português responsável pelo gens aristocrático do povo brasileiro,
seu elo com a civilização. Para o autor,
não faz sentido a discussão sobre qual dentre as três raças seria predominante porque a tendência é de uma
miscigenação contínua, dando origem a sub-raças, impossibilitando, dessa maneira, a unidade racial. O único meio desse povo biologicamente
enfraquecido sobreviver é progredindo socialmente, já que o progresso físico
estava comprometido.
Cunha associa, como era comum naquele período, o
desenvolvimento ou não de determinadas
habilidades físicas ao meio geográfico. O clima e o relevo seriam elementos
determinantes na formação dos habitantes de uma região específica. Para
evidenciar nossa composição heterogênea,
ele destaca duas sub-raças, mulata
e sertaneja, cujas características singulares são
contrapostas e diretamente vinculadas ao meio
ambiente na qual foram forjadas, uma no litoral e outra no sertão.
Ele trata primeiramente do mulato,
cuja gênese está fora do país. Embora a mistura entre branco e negro já acontecesse em Portugal, no Brasil, ela ganhou uma dimensão
irreversível. O autor põe ênfase na subordinação cruel imposta aos africanos a
ponto destes serem percebidos em relação de
equivalência valorativa com um animal de carga. Aqui, os negros foram
debilitados pelos grilhões e pelos desejos lascivos dos brancos. O mulato
brasileiro surge quebrado pela
servilidade dos negros e contaminado pelos vícios dos brancos, tornando-se,
segundo Cunha, o tipo característico do
litoral.
O segundo tipo é o sertanejo, cuja origem remonta aos desbravadores
bandeirantes oriundos de São Paulo e sua
mistura com os indígenas. Por ser uma sub-raça
mais pura, é também mais
forte. O homem do sertão é apresentado
sob três espectros: o jagunço, o vaqueiro e o gaúcho. Os três são vigorosos,
mas o jagunço se sobressai porque é mais
tenaz e mais resistente. Nas palavras de Cunha, os sertanejos eram retrógrados,
mas não degenerados como os habitantes do litoral. O isolamento fez com que tivessem hábitos
próprios e grande apego às tradições, com destaque para o sentimento religioso levado até o fanatismo. O sertão era, portanto, um lugar propício para
que uma figura como Antônio Conselheiro
encontrasse interlocutores.
O sertanejo é, por suas
contingências existenciais, pouco desenvolvido psiquicamente, por
conseguinte, sua forma de cultivar a religiosidade era despida de conteúdos
racionais mais elaborados. O autor define sua religião como mestiça, fundada,
entre outras coisas, sobre um monoteísmo
incompreensível. Incorpora elementos de religiões, narrativas
e práticas distintas: “o antropismo do selvagem, o animismo do africano
[...] e o aspecto emocional da raça superior na época do descobrimento” (CUNHA,
1984: 80).
Distantes da civilização e da sua modernidade secularizada, os sertanejos
tinham suas vidas marcadas pelas crendices e superstições. Sua sobrevivência
estava vinculada exclusivamente à terra.
Essa situação de vulnerabilidade tornava-os propensos a buscar auxilio no sobrenatural. Daí, estarem sempre prontos a seguir os
messias que apareciam naquelas paragens inóspitas e esquecidas. Diante das
necessidades imediatas dos sertanejos, o catolicismo dos primeiros missionários,
com sua ênfase no transcendente, não poderia prevalecer soberano sobre a magia
dos africanos e dos indígenas. Com o
tempo, os missionários não só se dobraram à religiosidade mágica daquele povo
como também se tornaram seus fomentadores. Conforme Cunha, eles destruíam,
apagavam e pervertiam tudo que foi ensinado pelos primeiros evangelizadores.
Usavam a credulidade dos ingênuos para os dominar. O temor que lhes inculcavam era tão grande que os tornavam facilmente
manipuláveis.
Não sem razão, Antônio Conselheiro, com sua “tranquilidade, altitude e
resignação soberana de apóstolo antigo” (CUNHA, 1984:86), conseguiu
cativar de imediato a atenção desse povo sofrido. Sua insanidade e atavismo eram
bem convergentes com as expectativas daqueles sertanejos de mentes
obscurecidas. Conselheiro era, segundo palavras do autor, um gnóstico bronco
que “aceitou” a missão de apontar o
caminho para pecadores.
Euclides da Cunha atribui à herança familiar, a predisposição belicosa do líder religioso,
embora este tenha sido descrito como tranqüilo e tímido na juventude. O fato que desencadeou a manifestação das
características latentes teria sido o adultério da sua esposa. Após o fatídico
episódio, ele abandona sua terra natal,
Quixeramobim no Ceará, vai para o Sul do
Estado e desaparece, reaparecendo dez anos depois na Bahia, já com sua aparência
de profeta e envolto por lendas. A
disciplina de asceta, com todas as suas dores e misérias, legitimava sua
santidade e atraía cada vez mais seguidores. Agindo como um profeta veterotestamentário, põe-se a denunciar e a combater o poder estatal e sua república, e o poder eclesiástico representado pela Igreja Católica
que, segundo suas palavras, tornara-se serva de Satanás. Seu discurso era escatológico, os seguidores
deveriam se desapegar de todas as coisas mundanas porque o fim estava próximo.
A crescente influência do asceta
fez com que as autoridades instituídas, insufladas principalmente pelas
exigências dos padres, tomassem providências. Uma primeira expedição, não com
mais de duzentos homens, fora enviada para acabar com os insurgentes. Naquele sertão castigante, os rebeldes
venceram utilizando, principalmente, os obstáculos naturais que lhes eram tão
familiares. Contudo, Conselheiro sabia que a vitória era apenas o
prenúncio de batalhas mais difíceis. O líder e seus seguidores vão para
Canudos, uma fazenda transformada em vilarejo. Com a chegada dos rebeldes em 1893, o
lugar obscuro revive e cresce rapidamente sob a força do carisma do Beato que
atraía pessoas de todas as cidadelas daquela redondeza. O efervescente povoado de Canudos, com sua
arquitetura rudimentar, torna-se, então, o local sagrado, protegido das
maldições que assolam o mundo externo. Ali instaurou-se uma forma de
religiosidade modelada conforme as diretrizes do profeta do sertão, cujo
arbítrio fez com que se estabelece naquela comunidade um organização social
quase clânica. No entanto, a rigidez de
Conselheiro, expressa em duras penitências, não impediu os sertanejos de levarem
a termo seus desejos carnais. O sinal mais evidente disso são os filhos espúrios
que nasciam. Se, por um lado, o líder não
deixava de condenar o comportamento dos seguidores como pecaminoso, por outro,
tolerava-o.
Os melhores discípulos, por mais contraditório que possa parecer, eram
aqueles que tinham suas vidas marcadas pelo crime. Estes ajudavam a
fortalecer a autoridade de Antônio
Conselheiro e expandir seus domínios. À medida que o movimento crescia,
aumentava também o desejo de mostrar que
Deus estava com eles, assim, empreendeu-se a construção de uma nova igreja, bem
diferente da capela que fizeram outrora. O novo templo, projetado pelo próprio
líder, surgiu imponente diante daquela
arquitetura precária do arraial.
Euclides da Cunha encerra a
segunda parte narrando o episódio em que a Igreja Católica envia alguns
clérigos para tentar demover o movimento e implantar uma missão no povoado. Embora tivessem permanecido por um tempo e
realizado alguns sacramentos, os representantes da Igreja Oficial foram
veementemente rejeitados. A fidelidade dos sertanejos ao Beato era inabalável e
os fizeram resistir até a morte, certos de que encontrariam do “outro lado” o
paraíso.
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*Resumo feito para a disciplina “Estado e Religião”
do doutorado em Sociologia da Universidade de Brasília
Referências Bibliográficas
CUNHA, Euclides.
O Homem. In: Os Sertões. São Paulo:
Três, 1984.