sábado, 5 de fevereiro de 2011

Sobre o modo como nos relacionamos na contemporaneidade




“Viver é muito perigoso”, aforismo recorrente na fala de Riobaldo, principal personagem  da saga  Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa, talvez faça hoje mais sentido do que em qualquer outra época.  Quem conhece a obra sabe que a sentença do autor não diz respeito apenas ao iminente perigo da morte, mas sobretudo aos riscos que estamos sujeitos por sermos seres primordialmente relacionais. Portanto, ao supor que  a vida,  hoje, é mais perigosa do  que em qualquer outro momento histórico,  não tenho em mente nenhuma das grandes ameaças a humanidade típicas do mundo contemporâneo, como armas de destruição em massa, catástrofes naturais decorrentes do aquecimento global e outros perigos que Ulrich Beck (1998) denomina de “riscos produzidos”, ou seja, efeitos colaterais dos avanços técnico-científicos.  Meu desejo é focar nos riscos derivados das profundas transformações que ocorrem no modo como nos relacionamos.
Vivemos no  tempo da liberdade individual, isso significa que cada um, de modo geral,  pode delinear sua própria  trajetória.  Não estamos mais sob a ditadura das identidades fixas: filho de peixe não será, necessariamente, peixinho, se cismar de ser outra coisa, não há determinismo biológico ou social capaz de se sobrepor a isso.  Os estudos de gênero estão aí para comprovar. Tudo é fluido, como afirma Bauman (2001), assim, não sabemos mais o que esperar uns dos outros. O que se quer agora pode não se querer mais daqui a um instante. O verbo “ser” que remete a uma condição essencial e, portanto, perene do sujeito,  é substituído pelo verbo “estar” que implica transitoriedade: “Eu não sou, eu estou”.  Aparentemente, as vantagens dessa nova forma de se colocar no mundo são muitas:  sexualidade vivida sem limites, não estar preso a relações insatisfatórias, experimentar tudo que tiver ao  alcance e uma série de outras coisas defendidas por aqueles que exaltam o relativo e condenam o absoluto. Contudo, não é preciso ser um especialista para perceber que embaixo dessa superfície cheia de cores, há uma enorme escuridão e, na escuridão, não vemos o caminho, não sabemos para onde ir, sentimos medo, ficamos paralisados. O  reino das possibilidades é, também, o reino da insegurança e, para sobreviver nele, é preciso, mais do que qualquer coisa,  de coragem.
            É arriscado acreditar nos outros,  investir em relacionamentos, criar expectativas.  Daí a palavra de ordem ser “curtir o momento”. O problema é que ainda não nos tornamos seres destituídos de sentimentos. Sempre vamos querer mais do que  “curtir o momento”.  Queremos relações duradouras, aprovação sincera, afeto incondicional. Assim, nos tornamos pessoas cada vez mais frustradas, desconfiadas e medrosas. Não sem razão temos um crescente número de indivíduos sofrendo de algum distúrbio psicológico: depressão, transtorno bipolar, paranóia, síndrome do pânico e muitos outros que poderiam ser elencados. Outra conseqüência, não menos importante, são as  concessões que alguns fazem  para não  ficarem sozinhos. A solidão talvez seja a mais assustadora das ameaças. Nesse sentido,  fica-se com qualquer pessoa apenas para não estar só e, com isso, paradoxalmente, estamos mais sós do que nunca.   Presença física não significa estar presente de fato
            O diagnóstico não é bom, mas também não é definitivo.  Podemos fazer escolhas diferentes destas que comumente nos são apresentadas.  Nadar contra a corrente requer de nós  um enorme esforço e, muitas vezes, vamos ficar cansados. Todavia, se simplesmente nos deixarmos levar, estaremos ajudando a construir uma sociedade onde predominam o fake, o superficial, o transitório. De forma concreta, fazer outras escolhas significa investir na dignidade humana; cultivar a sensibilidade para que jamais percamos  a capacidade de notar o sofrimento que causamos e de pedir perdão por isso; investir em relacionamentos saudáveis e, por fim,  dizer “não” a todos aqueles que insistem em nos tratar como mercadorias em estantes de supermercado.  
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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona:
Paidós, 1998.