sábado, 19 de dezembro de 2009

Etnografia, Estudo de caso e História de vida: métodos de pesquisa mais utilizados pelos interpretativistas



Dando continuidade ao tema dos métodos qualitativos nas ciências sociais, posto aqui um resumo sobre algumas das abordagens mais comuns no âmbito de uma concepção interpretativista, são elas: a etnografia, o estudo de caso e a história de vida.
Etnografia: Caracteriza-se pelo trabalho de campo. O pesquisador se infiltra, por um longo período de tempo, no grupo ou comunidade que deseja estudar e por meio de uma prática “artesanal, microscópica e detalhista” (Peirano, 1995, p. 57) coleta os dados. Para a coleta, ele pode usar, entre outros recursos, o caderno de campo, no qual vai descrever minuciosamente os aspectos sociais, possíveis de serem apreendidos por ele, dentro do ambiente investigado; pode, também, fazer entrevistas em profundidade com membros representativos daquele grupo; e, ainda, integrar-se ativamente na cultura local, a fim de facilitar sua compreensão sobre os motivos das ações sociais típicas daquele contexto social. A abordagem etnográfica parte da premissa de dar voz aos atores sociais.

O estudo de caso: Segundo Laville e Dionne (1999), trata-se do “estudo de um caso, vez de uma pessoa, mas também de um grupo, de uma comunidade, de um meio, ou então fará referência a um acontecimento especial” (p. 155). Segundo estes autores, o estudo de caso tem a importante vantagem de possibilitar um aprofundamento, já que o pesquisador não tem que se preocupar com restrições provenientes da comparação do caso com outros casos. Todos os recursos estarão concentrados no caso visado. No decorrer da pesquisa, o pesquisador estará mais livre para usar a imaginação e a criatividade, podendo, se necessário, fazer adaptações dos seus instrumentos, modificar sua abordagem para melhor captar elementos imprevistos. O cientista é motivado pela pretensão de que o caso estudado seja representativo daquela realidade social. Nesse sentido, a partir dos resultados ele pode, então, fazer generalizações. Esse método não está restrito ao campo das metodologias qualitativas e nem ao âmbito das ciências sociais.
História de vida: Também chamada de narrativa de vida, pode ser definida, segundo Laville e Dione (idem) como a narração, por uma pessoa, da experiência vivida no contexto do fenômeno social que interessa ao pesquisador. A narrativa autobiográfica deve acontecer com uma interferência mínima do estudioso que, por sua vez, é guiado pelo problema que motivou a pesquisa. Além disso, algumas hipóteses, circunscritas em uma dada problemática podem ser úteis para direcionar o trabalho de escolha de um ou mais participantes. Entretanto, Laville e Dione ressaltam que o papel desses elementos, ainda que seja de extrema relevância, deve ser discreto. No momento da narrativa, a prioridade é a perspectiva do autor-participante, portanto, deve-se evitar toda intervenção que possa desviá-lo da trama. Aos dados coletados com a história de vida podem se somar, como forma de complementação, dados de entrevista mais estruturada, cujas questões se ligam diretamente às preocupações do pesquisador. Como no estudo de caso, os resultados podem ser generalizados. Aliás, a história de vida pode também ser considerada um estudo de caso.

Os métodos acima apresentados não são, de modo algum, excludentes, ao contrário, são comumente combinados em pesquisas de cunho qualitativo. Diante do que foi colocado, podemos perceber que, de um modo geral, as mudanças, ainda em curso, que atingiram a forma de produção do conhecimento no contexto das ciências sociais, trouxeram benefícios relevantes. Dentre os quais se destacam: uma maior liberdade do pesquisador para escolher quais métodos atendem melhor as demandas do seu trabalho e uma gradativa mudança de postura, no sentido de que a ciência tem deixado de ser um fim em si mesma, tornando-se mais humanizada.

Referências Bibliográficas:
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Ed. UFMG, 1999.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1978.
PEIRANO, Mariza. A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Quando a vida é uma droga



Entre os problemas que a sociedade contemporânea enfrenta ganha destaque o crescimento do número de pessoas que fazem uso não medicamentoso das drogas. Apesar de todas as políticas repressivas do Estado, dos discursos conservadores que aliam o problema da drogadição à fraqueza moral e todas as conseqüências ruins que os próprios consumidores experienciam na suas vidas e nas de outros usuários, os dados apontam um avanço alarmante que, para alguns estudiosos*, indicam que o problema tem assumido proporções epidêmicas, particularmente, no que diz respeito à rápida popularização do crack. Inicialmente usada por pessoas das camadas mais baixas por ser uma droga relativamente barata e potente, seu consumo tem aumentado entre pessoas das classes médias. Esse aumento é justificado pelo efeito que provoca, muito mas intenso do que a cocaína, a droga de efeito estimulante preferida dos jovens com mais recursos.
Se a “onda” que o crack promove é potente, sua capacidade de viciar também é poderosa, daí ser hoje  uma séria questão de saúde pública. No entanto, o número sempre crescente de dependentes revela que o problema não está sendo tratado de modo eficaz. Medidas repressivas e discursos moralizantes não surtem os resultados esperados, antes, constituem uma forma reducionista de lidar com a questão.
Ora, se o número de dependentes cresce, não podemos dizer que esse é um problema individual, ou seja, não devemos responsabilizar somente os indivíduos, como se a opção pelas drogas fosse uma escolha absolutamente pessoal. É pessoal, mas é também resultante de problemas estruturais. Alguns podem argumentar que seriam problemas estruturais quando o consumo está relacionado à pobreza, à ausência de perspectiva em decorrência dessa pobreza e que, portanto, indivíduos que não vivem sob essas condições fazem uma opção livre de qualquer pressão social externa. Todavia, quando falamos de problemas estruturais isso vai muito além da escassez material. Referimo-nos a uma sociedade em transição, com crise de paradigmas, perda de referenciais, aliando-se a isso, uma indução incessante ao consumo e ao prazer.
Estamos vivendo um tempo marcado pela frouxidão institucional. Família, escola, religião e trabalho perdem, gradativamente, sua força normativa e o indivíduo liberto da tutela destas instituições precisa encontrar novo sentido e novas formas de adequação social. Ele está entregue a si mesmo, isso traz como implicação a exigência de que “sou eu” sozinho que preciso encontrar significado para minha vida. Nos discursos reducionistas, sobre as causas que levam uma pessoa a se tornar um dependente químico, prevalece o argumento de que é  fraqueza,  desejo de fuga,  medo de encarar a realidade que impulsionam os indivíduos ao uso não medicamentoso das drogas.
Acredito, como afirmou o antropólogo Eduardo Viana Vargas (2006), que o que os usuários de fato buscam, ainda que modo equivocado, é justamente um modo de não desistir. Dessa forma, é como se as drogas conferissem, de certa maneira, uma razão para sua existência. Assim, políticas públicas que as percebem apenas de modo negativo não são capazes de atingir com eficiência o âmago do problema, ou seja, se a droga tornou-se um caminho para os dependentes, a função do Estado e da sociedade civil é mostrar caminhos melhores e, se eles são poucos, temos um grande trabalho de construção pela frente.

* Entre esses estudiosos o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos In: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=12382&cod_canal=41 VARGAS, Eduardo V. Uso de drogas: a alter-ação como evento. In: Rev. Antropol. vol.49 no.2 São Paulo July/Dec. 2006



sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Métodos Qualitativos nas Ciências Sociais: limites e possibilidades

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     A partir de Weber e outros pesquisadores influentes, como Malinowski (1978) e seu método etnográfico, vemos surgir, no campo das ciências sociais, uma infinidade de métodos e técnicas de pesquisa qualitativos que em grande parte dos casos se complementam. Uma das vantagens que a abordagem qualitativa apresenta é justamente a plasticidade que lhe é inerente. Enquanto os métodos e técnicas quantitativos transmitem uma impressão de engessamento, as metodologias qualitativas oferecem ao pesquisador uma sensação de liberdade que, por sua vez, traz como risco a possibilidade de displicência metodológica no decorrer da investigação. Esta liberdade é geralmente interpretada pelos críticos como falta de rigor científico.
               Howard Becker (1999) defende tal liberdade ao extremo, optando por um modelo artesanal de ciência. Para ele, todo pesquisador, a exemplo dos clássicos, Marx, Durkheim e Weber, deve ser também um metodólogo. Afirma que “os sociólogos deveriam se sentir livres para inventar os métodos capazes de resolver os problemas das pesquisas que estão fazendo” (p. 12). O trabalhador, produzindo suas teorias e seus métodos, contemplaria aspectos singulares e variações locais do fenômeno investigado que as metodologias sugeridas nos livros e nos manuais não conseguem captar por serem genéricas.
   O cerceamento da liberdade, pelos métodos quantitativos, tem como uma de suas características, o controle da intuição através da formalização. Nas metodologias qualitativas, contudo, a intuição ganha um papel central. Robert Nisbet (2000), ressaltando a importância da imaginação e da intuição na pesquisa sociológica, afirma que muitos dos procedimentos intelectuais da sociologia clássica aproximam o sociólogo mais do artista do que do cientista social preso a regras inflexíveis. Entretanto, aqueles que ainda acreditam ser possível a neutralidade e, consequentemente, a objetividade absoluta no processo de construção do conhecimento científico, interpretam como falhas imperdoáveis o que foi apresentado até aqui como as vantagens oferecidas pelas metodologias qualitativas.
     Segundo Melucci (2005), as ciências sociais abandonaram uma perspectiva metodológica monista, própria das ciências naturais, e se abriram para uma concepção pluralista. No entanto, essa abertura não ocorreu sem dificuldades. E, apesar do êxito que a pesquisa qualitativa tem alcançado, não faltam críticas que colocam sob suspeita sua validade científica. As críticas mais contundentes são: falta de representatividade, predominância da subjetividade no processo investigativo e falta de critérios rígidos na coleta e análise dos dados.
             O problema da representatividade seria decorrente daquilo que Weber (1981) indica como uma prerrogativa da perspectiva interpretativista. Segundo ele:
[...]todo conhecimento reflexivo da realidade infinita realizado pelo espírito humano finito baseia-se na premissa tácita de que apenas um fragmento limitado dessa realidade poderá constituir de cada vez o objeto da compreensão científica, e de que só ele será “essencial” no sentido de “digno de ser conhecido” (idem, p. 88).

               A crítica se fundamenta no fato de que a pesquisa qualitativa, necessariamente, trabalha com unidades sociais. Ela precisa escolher um fragmento da realidade como sendo representativo dessa realidade. A questão é: Como saber se o fragmento escolhido tipifica bem o fenômeno social que o pesquisador busca compreender? Vinculada a esta questão está a dúvida sobre a possibilidade de generalização. Sem a certeza de que o fragmento da realidade seja representativo, consequentemente, a validade da interpretação fica comprometida. Ora, sem a possibilidade, mínima que seja, de generalização o trabalho não tem valor científico.
           O segundo problema, que não está de forma alguma separado do primeiro, seria a predominância da subjetividade no processo investigativo. A proximidade do sujeito epistêmico com seu objeto comprometeria todo o processo de pesquisa, desde a escolha da unidade que seria representativa do todo, até a análise dos dados. Embora o debate acerca da neutralidade e da objetividade esteja ganhando a alcunha de ultrapassado, o excesso de liberdade promovido pelas metodologias qualitativas poria em xeque o valor científico do conhecimento produzido com seus métodos e técnicas. Para os críticos mais dogmáticos, tal conhecimento não seria nada além de especulação.
                 Por fim, os críticos apontam a falta de critérios rígidos na coleta e na análise dos dados. Desse modo, ao mesmo tempo em que a pesquisa qualitativa permite um aprofundamento por meio da imersão do pesquisador na realidade que ele deseja compreender, esse aprofundamento é sempre limitado, já que ele deve escolher entre os inúmeros aspectos sociais, daquela realidade, aqueles que seriam mais relevantes para sua análise. Como os critérios dessa escolha são subjetivos, isso poderia acarretar num enviesamento do trabalho. Além disso, esse tipo de pesquisa gera uma grande profusão de dados, o que dificultaria a sistematização e análise dos mesmos.
               Tendo em vista todas as críticas e problemas apontados, não podemos, em defesa da pesquisa qualitativa, incorrer no erro ingênuo de acreditar que existam métodos infalíveis e que seria possível alcançar verdades absolutas, especialmente no contexto das ações e relações sociais. Como foi colocado, o objeto de investigação da sociologia é complexo e dinâmico e é, precisamente, a complexidade do objeto que demanda uma diversidade de métodos. Entretanto, tal diversidade redunda em um relativismo para o qual, de acordo com Melucci (2005), não existe saída absoluta.
                 Se os defensores das metodologias qualitativas são recorrentemente confrontados com os limites desse tipo de abordagem, recebem também, em grande medida, incentivos oriundos das possibilidades que elas apresentam. Além das vantagens, expostas em tópicos anteriores, vale ressaltar que, de forma distinta daqueles que têm a pretensão de fazer uma ciência pura e, desse modo, é a própria ciência que tem a primazia, a abordagem qualitativa prioriza os indivíduos e suas relações. A mudança paradigmática epistemológica/metodológica veio acompanhada de uma gradativa mudança de postura do cientista social.

Referências bibliográficas:


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DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional, 1995, p. 30-37.
FREUND, Julien. A sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense –Universitária, 1980.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:Vozes, 1998.
______. Das religiões, Folha de São Paulo, 14/05/2006.
BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1999.
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Ed. UFMG, 1999.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1978.
MELUCCI, Alberto. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005.
MINAYO, M.C.S; SANCHES, O. Quantitativo-qualitativo:oposição ou complementaridade? Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, 9(3), p. 239-262, 1993.
NISBET, A. Robert. A sociologia como uma forma de arte. In: Revista Plural. São Paulo: 7, USP, p. 111-130, 1º sem/2000.
PEIRANO, Mariza. A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 15 ed. São Paulo: Pioneira, 2000.
______. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Brasília: Ed. Unb, 1991
______. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. In: COHN, Gabriel (org.) Weber – Sociologia. Coleção Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1986.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Uma aprendizagem em Clarice Lispector



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A obra de Clarice Lispector influenciou significativamente no desenvolvimento do meu gosto pela literatura. Lendo-a, encontrei, de certa forma, a mim mesma. Não que eu mais do que as outras mulheres me identifique com a autora. Em Clarice todas as mulheres podem se ver e todos os homens têm a possibilidade de comprovar que nós, de fato, somos seres complexos, mas não totalmente indecifráveis. A única exigência para entrar no universo da escritora é um nível mínimo de sensibilidade. Uma pessoa que tenha uma mentalidade absolutamente pragmática não está preparada para aprender tudo que ela tem para ensinar. Mais do que falar de dilemas femininos, Lispector deseja mostrar uma maneira de perceber o mundo, de viver a vida de modo intenso, mas sem cair na tentação das frivolidades que não nos dignificam. Em seu romance intitulado Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres, ela nos propõe de forma clara um caminho para o auto-conhecimento que só é possível por meio da relação com o outro.
A heroína do romance é Lóri, ou melhor, Loreley, moça proveniente de uma família rica que perde parte da fortuna. O pai e os irmãos, dos quais se desligara, viviam em Campos, cidade do interior do Rio de Janeiro. Ela morava na capital e trabalhava como professora primária. Totalmente voltada para si mesma, não queria estabelecer vínculos mais fortes com ninguém; não esperava e nem buscava nenhuma alegria extrema para sua vida. A única concessão eram alguns casos esporádicos com homens pelos quais não corria risco algum de se apaixonar. É através de Ulisses, um professor de filosofia, que Lóri inicia sua trajetória para se tornar aquilo que ela deveria ser, superando seus medos, aprendendo a aceitar o sentimento de falta que é inerente à vida e, especialmente, compreendendo que o amor é inesgotável e que, portanto, não havia razão para não oferecê-lo, sem medida, aos outros.
Nos diálogos entre Loreley e Ulisses manifesta-se a visão existencialista da autora que procura mostrar que validamos nosso breve tempo na terra quando, a despeito de tudo, continuamos a viver, cultivando a alegria e aceitando todas as dores que cada dia, um por vez, possa nos trazer. Por meio de Ulisses, Clarice nos ensina:

[...] uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.

Com Lóri entendemos que a mudança exige enorme coragem porque é imprescindível que entremos em contato com nossas fraquezas, mesquinharias, desejos obscuros. Na prece, que Ulisses a incita a fazer, vemos não apenas a busca de uma intervenção externa, mas, sobretudo, um processo de auto-revelação. Ao orar Loreley volta-se para si mesma  num esforço introspectivo:

Deus [...]alivia a minha alma, faze com que eu sinta que tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.

A metamorfose de Loreley é uma transformação no sentido de se tornar aquilo que cada um de nós deveria ser. “A mais premente necessidade de um ser humano é tornar-se ser humano”, sentencia a personagem de Clarice, já a caminho de um recomeço.

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Fundamentos metodológicos da sociologia: a proposta objetivista de Durkheim e a contrapartida subjetivista de Max Weber*


Entre os dilemas que o cientista necessariamente tem que enfrentar está o de escolher o método mais apropriado para a apreensão do fenômeno que deseja investigar. Na sociologia, especificamente, esse dilema pode alcançar grandes proporções, isto porque os fenômenos que deseja compreender possuem uma complexidade e um dinamismo que condicionaram o surgimento de vários tipos de abordagens metodológicas. Assim, o pesquisador se vê diante de uma infinidade de caminhos e deve, então, decidir qual deles o fará alcançar, com maior êxito, o seu objetivo. Em princípio, apresentam-se dois paradigmas metodológicos: o percurso proposto pelos métodos e técnicas quantitativos ou o trajeto proposto pelos métodos e técnicas qualitativos.
O surgimento da sociologia ocorre num período em que ciências naturais ditavam as regras para o exercício de uma ciência pura, portanto, seus métodos tinham a primazia absoluta. O positivismo reivindicava para si a alcunha de verdadeira ciência e rechaçava todas as outras formas de conhecimento que não primavam por métodos experimentais. Era uma reação contra o apriorismo, representado sobretudo por Kant, e o idealismo, cuja expressão máxima é Hegel. É fundamentada nestes pressupostos que a sociologia vai se desenvolver na Europa do século XIX.
Não é sem razão que Auguste Comte (Benoit, 1999) mentor da filosofia positiva, denominou, primeiramente, de Física Social a forma de conhecimento que depois foi chamada de sociologia. A influência da teoria evolucionista aliada à crença na determinação das leis, fez com que o precursor da sociologia lhe desse um enfoque absolutamente vinculado à forma de sistematização e técnicas metodológicas das ciências naturais. Durkheim, herdeiro do empreendimento iniciado por Comte, continua, de certo modo, a trilhar o mesmo caminho. Em sua busca por um método que fosse especificamente sociológico, encontra na Biologia os fundamentos para propor uma concepção orgânica da sociedade. Embora não se deva reduzir o pensamento durkheimiano à concepção da teoria funcionalista, metodologicamente ela é essencial para se compreender o modo como ele percebia o dinamismo das forças sociais.
Para Durkheim (1995), todas as respostas devem ser buscadas nos fenômenos observáveis. Portanto, os métodos apropriados seriam àqueles que permitem a apreensão objetiva dos fatos sociais. A partir desta premissa, sugere algumas regras que devem ser respeitadas pelo cientista social: o pesquisador precisa buscar um distanciamento de todas as suas pré-noções, ainda que esta seja uma tarefa difícil; o objeto de pesquisa deve ser sempre “um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos aqueles que correspondem esta definição” (1995, p. 30); por fim, o sociólogo, ao investigar um fato social, precisa se esforçar para desvinculá-lo de suas manifestações individuais, ou seja, considerar apenas os aspectos sociais e, por conseguinte, externos do fenômeno investigado.
A objetividade absoluta pretendida pelos fundadores da sociologia, Comte e Durkheim, dificultou a aceitação dos métodos e técnicas de abordagem qualitativa. No âmbito das ciências sociais, vimos surgir uma rivalidade entre os herdeiros do pensamento positivista e os defensores de metodologias que querem ir além dos dados estatísticos, que desejam fazer uma análise dos fenômenos sociais a partir de dentro. Se a pesquisa quantitativa, numa perspectiva estrita, assume a preferência por uma explicação decorrente da mensuração e análise das relações causais entre variáveis, a pesquisa qualitativa tem por objetivo compreender os fenômenos sociais privilegiando o estudo dos micro-processos, considerando, assim, as ações dos indivíduos e dos grupos dentro do contexto social. Os métodos qualitativos encontram sustentação, entre outros pensadores, em Weber, com sua proposta de sociologia compreensiva, ou interpretativa.
O tempo em que as ciências sociais eram tuteladas pelas ciências naturais, passou. Clifford Geertz (1998) aponta uma mudança nos paradigmas epistemológicos/metodológicos. As ciências sociais que, outrora, dependeram de métodos de áreas mais consolidadas, e, portanto, mais reconhecidas na produção do conhecimento, passaram por um processo de libertação. Livres, os cientistas sociais “podem agora moldar seu trabalho de acordo com as necessidades que estes apresentem e não para satisfazer percepções externas sobre aquilo que devem ou não fazer” (1998, p. 36). Deixando de lado as analogias com as ciências naturais, as ciências sociais recorrem às Humanidades. Segundo Geertz, chegou o tempo em a interpretação tem a primazia. A conseqüência óbvia dessa mudança é a diversificação dos métodos e técnicas de pesquisa de cunho qualitativo.
Na gênese dessa mudança paradigmática, no âmbito da sociologia, encontramos Max Weber, segundo o qual, “no campo das ciências sociais, o que nos interessa é o aspecto qualitativo dos fatos” (1986, p. 90). Diferentemente de Durkheim, que estabelece como princípio investigativo uma separação do fato social, que ele define como exterior e coercitivo, das instâncias individuais, Weber (1991) propõe que é por meio das ações dos indivíduos, que são dotadas de sentido, que podemos compreender os fenômenos sociais.
Sob essa perspectiva, a sociologia teria como objetivo principal, entender como “os homens avaliam e apreciam, utilizam, criam e destroem as diversas relações sociais” (Freund,1987, p. 28). Nesta proposta, não há um menosprezo em relação as metodologias quantitativas, o que o autor deseja mostrar é que é possível ter acesso científico aos fenômenos sócio-culturais de dentro para fora, ou seja, procurando compreender o sentido que os sujeitos imprimem às suas ações. A noção de sentido é central na análise compreensiva. É o sentido manifesto, e, portanto, passível de ser apreendido pelo pesquisador, que revela a natureza da ação, quer seja ela política, econômica ou religiosa.


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*Este texto é a parte introdutória de um paper apresentado à disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa do mestrado em sociologia da Universidade Federal de Goiás.

Referências Bibliográficas:

BENOIT, Lelita Oliveira. Sociologia comteana: gênese e devir. In: Clássicos e comentadores. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional, 1995, p. 30-37.
FREUND, Julien. A sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense –Universitária, 1980.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:Vozes, 1998.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Brasília: Ed. Unb, 1991.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Da Esperança e das falsas esperanças



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Dentre todos os sentimentos que podemos cultivar, a esperança talvez seja o mais arriscado. Isso porque ter esperança significa alimentar expectativas de que algo que desejamos muito irá, mais cedo ou mais tarde, acontecer. Não há nada de errado nisso, ao contrário, é justamente esse sentimento que nos faz olhar para frente, que nos move, que não nos permite desistir. O problema é que, não raras vezes, podemos nos frustrar e é o modo como lidamos com nossas frustrações que determina se somos, de fato, indivíduos com competência para a vida. Digo isso porque acredito que a verdadeira esperança não sucumbe diante dos fracassos, decepções e toda sorte de contratempos que surgem em nossos caminhos. Falo de uma esperança “essencial”, que nos faz transcender e nos fortalece para que recomecemos sempre que necessário.
Não sou adepta desse “otimismo de auto-ajuda” tão em voga hoje em dia. Penso que autores desse tipo de literatura estão entre os maiores propagadores de falsas esperanças. As falsas esperanças são aquelas que nascem não de uma visão realista do mundo, mas da ilusão de que podemos alcançar um estado perene de bem-estar. Reconheço que esses livros que trazem “receitas” para obter sucesso, felicidade e satisfação constante, possam até ter o mérito de conseguir estimular atitudes benéficas diante de circunstâncias difíceis. Todavia, isso não é suficiente para se sobrepor ao efeito colateral que provocam. Acenar com a possibilidade de sentir-se bem o tempo todo traz como conseqüência a sensação constante de que “ eu devo não estar seguindo direito todos os preceitos, já que não consigo me sentir pleno e realizado como me foi prometido pelo expert vitorioso e sempre feliz que escreveu o livro.” Os consumidores de auto-ajuda estão sempre em busca de uma nova receita até que um dia, creio, eles criem coragem para ver o mundo como ele é de fato e, mesmo assim, continuar esperando e lutando para que coisas boas aconteçam.
Uma das mais interessantes abordagens sobre esperança que encontrei está no imperdível filme Um sonho de liberdade (The Shawshank Redemption). Dirigido por Frank Darabont, o roteiro apresenta a história de um bancário, AndyDufresne, que foi preso injustamente acusado de ter matado a esposa e seu amante. Seu melhor amigo na prisão é Red, um negro que está preso há mais de trinta anos. Red é o narrador da história e é sob sua perspectiva que vemos os fatos que mostram a tenacidade de Dufresne e a transformação  que a amizade com o bancário promove eu no modo como ele lida com a realidade que o cerca. A princípio, ele é o cara que, em decorrência de sucessivas frustrações, começou a ver a esperança como uma coisa ruim, perigosa. A postura que havia assumido era a de não esperar por coisa alguma.
Ao contrário de Red, Andy Dufresne percebe a esperança como algo bom e, mesmo tendo passado vinte anos na prisão, sofrendo abusos físicos, morais e emocionais, alimentou dia após dia o sonho de ser livre novamente. Perder a esperança significaria desistir da própria vida. Além de não desistir, o presidiário também não permite que seu melhor amigo desista. São nas palavras finais de Red , rumo ao lugar marcado para rever Dufresne, que aprendemos que para ir adiante é necessário confiar que lá encontraremos aquilo que buscamos: “Espero que Andy esteja lá. Espero conseguir atravessar a fronteira. Espero encontrar meu amigo e apertar a sua mão. Espero que o Pacífico seja tão azul quanto em meus sonhos. Espero...”

domingo, 21 de junho de 2009

Do Amor e dos falsos amores



Confesso que procurei resistir bravamente à tentação de falar sobre esse tema, mas, como podem perceber, fui vencida. Certo incômodo que tomou conta de mim nos últimos tempos é o principal responsável por eu estar aqui tratando, também, do assunto mais debatido na história da humanidade. Não tenho a pretensão de chegar a nenhuma conclusão definitiva sobre a questão (isso seria o cúmulo da presunção), meu intuito é, sobretudo, compreender melhor as mudanças na forma como as pessoas se relacionam no nosso contexto histórico-cultural.
Penso ser de uma inutilidade absurda fazermos comparações entre períodos históricos distintos, sentenciando que um foi melhor em detrimento do outro. Digo isto porque é comum ouvirmos pessoas que se referem ao passado exaltando supostas qualidades que se perderam no decorrer do tempo. Geralmente concluem afirmando que os dias estão cada vez piores. O fato é que todas as épocas têm seus próprios males, simplesmente porque nós, seres humanos, somos especialistas em produzir males. Como posso eu, como mulher, dizer que era melhor viver sempre como cidadã de segunda classe como ocorria de modo acintoso num passado recente? É óbvio que ainda não há equivalência de direitos, contudo, já avançamos bastante. Esse exemplo é só para esclarecer que não é minha intenção estabelecer parâmetros valorativos entre a sociedade contemporânea e outras formas de organização social. Como socióloga, restrinjo-me a tratar do passado apenas como meio para entender o presente, meu foco é sempre os problemas sociais que enfrentamos na atualidade. Entre esses problemas, destaco a forma como as relações são construídas e rapidamente desfeitas nessa sociedade que cultua o modo Sex and the city de viver.
Zigmunt Bauman, sociólogo polonês, observa, em seu livro Amor líquido, que os vínculos que desenvolvemos, de forma geral, são frágeis. Essa é conseqüência previsível da ênfase que a ideologia liberal põe sobre o indivíduo. Com a modernidade aprendemos a nos colocar sempre em primeiro lugar, “são os meus interesses, desejos e vontades que preciso atender antes de tudo”. Numa sociedade assim, qual o lugar do amor? C. S. Lewis, em Os quatros Amores, faz uma distinção entre dois tipos de amor. O primeiro é o amor-doação, caracterizado pelo altruísmo, ou seja, capacita-nos a pensar no outro antes nós mesmos. O segundo tipo é o amor-necessidade que nos faz buscar o outro para suprir nossas próprias demandas. O amor-necessidade cumpre a função importante de nos direcionar para o próximo num sentimento de dependência. O grande problema é quando ele se sobrepõe ao amor-doação. É exatamente isso que acontece na sociedade atual, daí a facilidade com que se desfazem os laços humanos. É difícil manter uma relação na qual cada um pensa apenas no seu próprio bem estar, acrescenta-se a isso o agravante de que todos nós temos demandas existenciais que jamais serão supridas por outra pessoa, por mais cheia de qualidades que ela seja.
  O que vemos hoje é a celebração da superficialidade, dos amores falsos e efêmeros, da vida descompromissada. Entretanto, isso serve apenas para tornar ainda mais evidentes nossa solidão e carência. No fundo, o que a maioria anseia é pela oportunidade de encontrar alguém que lhe ofereça e a quem possa oferecer, sem medo, a chance de um relacionamento duradouro. O grande empecilho que cada um enfrenta, todavia, é o próprio egoísmo, já que toda relação para se manter exige esforço, concessões de ambas as partes e, não menos importante, a consciência de que uma relação jamais poderá ser constituída apenas de “puro prazer”.
  Apesar do quadro negativo descrito, acredito ainda que há possibilidades de encontros verdadeiros, de reconhecimento mútuo. No entanto, creio que esse é um privilégio reservado somente para aqueles que de alguma maneira aprenderam a ver mais do que aquilo que é aparente nas pessoas. É lá, nesse lugar oculto à primeira vista, que encontramos as qualidades que podem suscitar em nós a vontade de estarmos próximos de alguém para sempre.

BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
LEWIS, C. S. Os quatro amores. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

O Evangelho de Jesus Cristo segundo Saramago

"Porque tive fome e não me deste de comer; tive sede e não me deste de beber; estive nu e não me vestiste..."


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Em uma lista dos escritores que mais admiro, José Saramago ocupa, com certeza, um lugar significativo. Não só pelos seus enredos sensacionais, mas também pelo estilo peculiar na elaboração de seus textos. Ele é, no sentido mais exato, um artista das letras e usa todo esse talento para escrever o seu mais polêmico livro: O evangelho segundo Jesus Cristo.
A narrativa de Saramago expõe, não de forma explícita, um questionamento que é comum à grande parte dos céticos: a suposta incompatibilidade da existência de um Deus bom e onipotente com o mal e o sofrimento que imperam no mundo. Assim, não é bem uma postura ateísta que se revela no livro, mas um antiteísmo. O autor-narrador empenha-se em desconstruir a concepção judaico-cristã de um Deus de amor, cheio de misericórdia e graça. Nesse sentido, na imagem do Criador que ele apresenta destacam-se a arbitrariedade e o sadismo que, por sua vez, fizeram de seu próprio Filho uma vítima. A humanidade de Jesus é levada às últimas conseqüências. Para isto, o escritor explora, como tantos já fizeram, uma suposta relação marital de Cristo com Maria Madalena; propõe que o relacionamento de Jesus com a mãe, Maria, era permeado de conflitos e, sobretudo, descreve o Filho de Deus não como um “cordeiro mudo sendo levado ao matadouro”, mas como alguém que resistia em cumprir a vontade do Pai.
Érico Veríssimo sentencia, através de uma de suas personagens,  no livro "Olhai os lírios dos campos",  que nem o crente mais fervoroso preocupa-se tanto com idéia de Deus como o mais convicto dos ateus. Saramago, que assume seu ateísmo, parece não fugir à regra. Afinal, o fato de recontar, sob uma perspectiva própria, a biografia de Jesus é um indicativo de que ele, como todo bom ateu, não consegue, simplesmente, assumir uma posição de indiferença religiosa.
Não compartilho de modo algum com a idéia de Deus apresentada na obra de Saramago. Falta ao autor um conhecimento mais aprofundado da teologia bíblica. No entanto, a Igreja institucionalizada deveria fazer uma mea culpa, pois é exatamente essa a percepção que, no decorrer dos séculos, ela construiu e repassou com sua intolerância. Não me refiro ao catolicismo apenas, mas ao cristianismo, de modo geral. Ora, se a Igreja é a representante de Deus na terra, não é sem razão que sua imagem seja confundida com a imagem do próprio Deus. O que vemos é um cristianismo que caiu na tentação da luta pelo poder, que acumula riquezas, constrói catedrais luxuosas, gasta milhões em ostentação e afastou-se, há muito tempo, do verdadeiro sentido do Evangelho de Jesus.
Portanto, apesar do ateísmo (ou antiteísmo) de José Saramago, seu clamor por justiça, presente no evangelho por ele proposto e em outras obras suas; seu socialismo sincero; seu desejo, sempre evidente, de que a sociedade saia da escuridão, torne-se lúcida e trabalhe na construção de um mundo no qual o bem prevaleça de forma definitiva sobre o mal, são demonstrações categóricas de que ele está muito mais próximo do Reino dos céus do que boa parte dos supostos representantes de Jesus na terra.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Sociedade contemporânea: medo, individualização e a possibilidade de uma práxis comunicativa





A sociedade contemporânea caracteriza-se por uma complexidade "sui generis", decorrente, sobretudo, da acentuação do dinamismo próprio do processo de modernização. Se os clássicos da sociologia tomaram para si a tarefa de explicar e/ou interpretar um mundo no qual prevalecia, de modo geral, a crença de que a sociedade evoluía para um estágio avançado de organização social, os contemporâneos têm a missão de trazer luz sobre os rumos incertos de uma civilização para a qual o futuro é uma obscuridade.
Zygmunt Bauman, para caracterizar a civilização moderna e globalizada que privilegia alguns e exclui milhões, põe em destaque o medo. Ao perder sua fé no potencial da ciência de construir um mundo mais seguro e mais feliz, o indivíduo vê-se à deriva no processo histórico. Sente-se vulnerável perante as muitas ameaças que a caótica realidade social contemporânea apresenta. A possibilidade da violência, da solidão, das epidemias, da exclusão social, produz ansiedades típicas do nosso tempo. O mundo, descrito pelo autor, é o mundo das coisas fora do lugar. Em sua visão, não é como se a lei e a ordem entrassem em colapso, mas é “como se nunca tivessem existido”.
As certezas próprias da modernidade sólida/pesada evaporaram-se na modernidade líquida/leve. O insucesso dos grandes projetos da iluminada comovisão moderna redundou numa sempre crescente individualização. Sobre o homem de hoje, Bauman (2001) assinala que, “Nas novas circunstâncias, o mais provável é que a maior parte da vida humana e a maioria das vidas humanas consuma-se na agonia quanto às escolhas e objetivos.”
Impulsionando o processo de individualização está o capitalismo de consumo. É através do consumo que os sujeitos constroem sua individualidade e, por conseguinte, manifestam sua condição de seres livres. No entanto, tal liberdade se torna relativa, já que o próprio consumo lhe impõe limites, no sentido de que, a permissão para consumir não é concedida a todas as pessoas indiscriminadamente. E aos que tem permissão, é o mercado que determina tanto as necessidades quanto os produtos para satisfazê-las, como assinalam Adorno e Horkheimer na 'Dialética do Esclarecimento'.
Sob o ponto de vista de Jürgen Habermas, o século XXI desponta trazendo consigo o peso da crise do estado de bem-estar social e do esgotamento das energias utópicas. A nova situação, segundo ele, resulta do fato de que o programa do Estado, que alimentava-se, recorrentemente da utopia de uma sociedade do trabalho, não consegue mais construir possibilidades futuras de uma vida coletivamente melhor e menos ameaçada. Assim, o autor faz uma análise do mundo contemporâneo pondo em evidência a insegurança resultante do temor de um futuro que se mostra ameaçador.
Contudo, a descrição habersiana não se encerra na perspectiva negativa aqui apresentada. O autor faz questão de mostrar que, embora o quadro seja sombrio, o atual contexto traz em si as condições necessárias para “uma práxis comunicativa cotidiana e para um processo de formação discursiva da vontade, as quais poderiam criar as condições para os próprios participantes - segundo as necessidades e idéias próprias e por iniciativa própria – possibilidades concretas de uma vida melhor e menos ameaçada.”
Nesse sentido, a construção de uma sociedade mais livre e igualitária depende basicamente da suplantação da razão instrumental, própria da modernidade - cujo propósito é controlar a natureza e subjugar o outro - por uma razão comunicativa, que poderia levar a humanidade a uma etapa de convivência mais pacífica e, por conseguinte, menos perigosa.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Pierre Bourdieu e a proposta de uma "Teoria da Prática".



Segundo Bourdieu, existem três abordagens teóricas cujo objeto é o mundo social: o conhecimento fenomenológico, o conhecimento objetivista e o conhecimento praxiológico. Cada um desses tipos de conhecimento possui um conjunto de teses antropológicas.
O conhecimento fenomenológico, priorizando o subjetivismo, busca compreender a percepção do sujeito na sua apreensão do objeto. O que interessa é a experiência primeira do mundo social. O conhecimento objetivista, por sua vez, constrói relações objetivas que estruturam as práticas e as representações de práticas que naturalizam o mundo social. Bourdieu tece uma crítica aos dois tipos de abordagens, pois constituem visões unilaterais que alienam sujeito e objeto.
Assim, o conhecimento praxiológico, defendido pelo autor, propõe que deve se considerar não somente os sistemas das relações objetivas, como postula o objetivismo, mas também a relação dialética entre essas estruturas e as disposições estruturadas – habitus – nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las. Tal relação dialética seria o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade. Desse modo, o conhecimento praxiológico não elimina as aquisições do conhecimento objetivista, mas conserva-as e vai além, integrando o que esse conhecimento teve que excluir para obtê-las.
Bourdieu alerta que, por não construir a prática senão de maneira negativa, ou seja, por meio de categorias analíticas que não passam de abstrações que tenta reificar- tais como cultura, classe social, modo de produção- o conhecimento objetivista não acrescenta nada no sentido de se entender o princípio de produção das regularidades, negligenciando, portanto, um ponto importante para a compreensão mais abrangente do mundo social.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A vida realmente ensina, mas só os atentos aprendem



Semana passada fui ao cinema assistir “Quem quer ser um Milionário?” (Slumdog Millionaire). Motivada, especialmente, pelo fato de ser um filme que tem o enredo como seu maior trunfo. Ora, um longa-metragem feito fora do circuito hollywoodiano, com um baixo orçamento, se comparado aos padrões dos filmes estadunidenses, e que foi reconhecido pela Academia com oito estatuetas, incluindo a de melhor filme, merece ser visto.
Eu sei que para muitas pessoas, me incluo entre elas, a opinião daqueles que concedem o Oscar não é significativa. Mas, devemos admitir que, desta vez, a escolha foi surpreendentemente maravilhosa. Sem lançar mão da parafernália tecnológica usada em grandes produções, o diretor, Danny Boyle, conta-nos, de forma magistral, a história de Jamal, um adolescente indiano proveniente da favela que consegue ganhar o prêmio máximo, 20 milhões de rúpias, em um programa de perguntas e respostas da televisão.
O ponto de partida da trama é o questionamento: Como pode um favelado conseguir chegar aonde nem pessoas com alto nível de formação acadêmica conseguiram?
A vida do garoto é marcada por tragédias pessoais, como ver a mãe assassinada por policiais hindus - sua família era mulçumana. Órfãos, ele e o irmão têm de lidar com diversas situações difíceis. Mas o grande mote do enredo é o amor que Jamal nutre, persistentemente, por Latika, uma jovem, também órfã, que conhecera ainda criança. Esse sentimento é o fator determinante de toda a existência do rapaz. Assim, ele não está no programa pelo prêmio, mas por Latika.
Mas, voltando a questão que é o eixo da trama, como ele conseguiu responder todas as perguntas corretamente? Jamal não é nenhum gênio, mas tem a capacidade ímpar de aprender, simplesmente, prestando atenção em sua própria vida. Todas as respostas foram buscadas em sua vivência. O mérito do adolescente está no fato de que, diferentemente da maioria, ele estava sempre atento ao que lhe acontecia e, mais, aprendeu a ler, não os livros, mas as pessoas. Como diriam os críticos afetados, “Vale a pena conferir.”

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Em defesa de uma existência plena

“Por que amar, se perder machuca tanto? Eu não tenho mais respostas: só a vida que eu vivi. Duas vezes nessa vida foi me dada a escolha: como um garoto e como um homem.O garoto escolheu a segurança, o homem o sofrimento. A dor de agora faz parte da felicidade de então. Esse é o trato.”

O mundo moderno, guiado pelos postulados do iluminismo, exaltou a razão, a capacidade transformadora do homem e tomou para si a missão de lançar os fundamentos de uma sociedade livre, fraterna e igualitária. A ciência assumiu uma posição de absoluta primazia por um bom período de tempo em detrimento da religião que passou a ser associada ao “infantilismo da humanidade” por Freud, à idéia de “alienação” por Marx e a outras concepções antropocêntricas cujo ápice foi o decreto da “morte de Deus” por Nietzsche.
Contudo, o avanço técnico-científico revelou, especialmente por meio das duas grandes guerras mundiais, que tem seu lado sombrio. Segundo Giddens, a possibilidade criada pela ciência de dizimar populações inteiras por meio das armas de destruição em massa nos colocou sob risco iminente que, por sua vez, gerou uma espécie de incerteza na sociedade contemporânea. Ao contrário do contexto iluminista, vivemos uma época de pessimismo. O homem de hoje não olha para o futuro. Daí o menosprezo com que os governantes e a grande maioria das pessoas tratam os alertas acerca dos perigos que o desrespeito ao meio-ambiente representa.
Entre as conseqüências da frustração que as promessas não cumpridas do iluminismo provocaram, quero destacar a emergência de uma sociedade hedonista que é, por seu turno, reflexo de um tempo em que a esperança deixou de existir ou, na melhor das hipóteses, tem sido direcionada para coisas que jamais poderão trazer satisfação perene ao ser humano, resultando, portanto, em maior frustração.
Ser feliz é o imperativo do capitalismo de consumo vigente, por conseguinte, é o desejo hedonista de uma existência sem sofrimento que orienta a conduta e transforma as relações em um culto à superficialidade. O sofrimento deve ser evitado a qualquer custo, predominando a exigência de alívio imediato para as dores da vida. O problema, entretanto, é que por mais que nos esforcemos para ignorá-lo ou suplantá-lo por meio de fórmulas químicas ou através das receitas dos livros de auto-ajuda, ele não pode ser eliminado, pois é elemento constituinte da existência humana.
C. S. Lewis – escritor cristão que ficou mundialmente conhecido pela Série Nárnia – elegeu o problema do sofrimento como um de seus temas principais. No livro autobiográfico Surpreendido pela Alegria, ele confessa que mais do que buscar a felicidade, se esforçou para não sofrer. Para isso, optou por uma vida sóbria de solteirão convicto. Abrir-se para o amor seria se por em risco desnecessário. Entretanto, as coisas não correram do jeito que ele planejara.
O filme Terra das sombras, estrelado por Anthony Hopkins e Debra Winger, mostra o bendito fracasso de Lewis. Ele estava com mais de cinqüenta anos quando conheceu Helen Joy Dadviman, uma poetisa norte-americana. O amor entrou sorrateiramente no coração do escritor, mas ele só foi capaz de admitir isso quando descobriu que Helen estava com câncer.Vencido pelo sentimento, casa-se com ela. Fica evidente que jamais experimentara tamanha felicidade, mas, ironicamente, nunca havia sentido tamanha apreensão, já que o prenúncio da dor que havia de experimentar sombreava sua felicidade. Em um dos mais significativos diálogos do filme, a poetisa toca no assunto de sua morte, Lewis responde que não queria falar sobre isso, Helen então argumenta que ele precisava saber que a dor que iria sentir depois era parte da felicidade que estava sentido naquele momento.
Ora, a esposa de Lewis estava dando a definição exata do que é felicidade. Ao contrário do que muitos pensam, felicidade não é ausência do sofrimento, mas é a capacidade de reconhecer o que temos de bom no tempo presente, ainda que o bom não exista em estado puro. Ou seja, a existência plena, implica numa aceitação consciente do absurdo que é a vida, com seus bons e maus momentos.
Pode parecer paradoxal, mas a busca desenfreada por prazer tem o poder de colocar ênfase sobre o que é ruim. Isto porque, o prazer é efêmero, mas o vazio que o sucede torna-se constante. Então, vemos pessoas em um ciclo vicioso ansiando por uma felicidade que nunca está aqui, mas sempre lá e, em nome dela, estão sempre dispostas a sacrificar o bem-estar de outras pessoas. Afinal, o egoísmo, a cobiça, as traições, tudo é justificado, porque “eu tenho a obrigação de lutar pela minha felicidade”. Lamento informar que os que lutam para ser felizes não o serão nunca. Felicidade não se consegue por esforço. Ela é um estado de alma sustentado pelo sentimento de gratidão, pela disposição de perdoar, pela competência para rir de si mesmo e, acima de tudo, ela resulta da coragem de nos abrirmos para o outro através do amor, à exemplo do que Lewis fez, mesmo que isso nos faça sofrer profundamente. Se não for assim, não poderemos dizer que vivemos a vida plenamente.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Capitalismo de consumo e reificação do homem: denúncia e convite para que resgatemos nossa humanidade



A modernidade surge sob a égide de um novo modo de produção que, por sua vez, é um dos fatores que mais suscitaram mudanças na cultura ocidental. O homem, a partir de então, começa a ser percebido como indivíduo autônomo, sujeito de si mesmo e da história. A expectativa era de que a razão conduziria a humanidade a um futuro glorioso. Livre da tutela da religião, com a perspectiva de controle total da natureza através da ciência, a construção de uma sociedade perfeita era apenas uma questão de tempo.
O otimismo em relação ao homem e ao futuro da humanidade sofreu golpes fatais. Entre os mais relevantes está o desmascaramento do sistema capitalista por Karl Marx. Não sou comunista, não nos moldes do marxismo, mas isso não me impede de reconhecer que, em pelo menos um aspecto de suas investigações, o pensador alemão estava certo. No capítulo “A mercadoria” de O Capital, ele procura mostrar que de todos os males que o capitalismo trouxe o mais nocivo é o processo de reificação do ser humano. Isso significa que na engrenagem da economia liberal, os trabalhadores foram transformados em peças, existindo para o objetivo único de produzir mercadorias, estas sim, são as verdadeiras protagonistas do novo sistema.
Desde o período histórico pesquisado por Marx, o modo de produção capitalista passou por diferentes fases, mostrando uma capacidade impressionante de adaptação, evitando assim – ou pelos menos retardando - que a profecia marxiana de um colapso se cumprisse. É bem verdade que muitos países conseguiram alcançar um nível satisfatório de riqueza e distribuição de renda, especialmente, através do welfare state das sociais democracias. Mas, também é verdade que para que esses países continuem ricos é preciso que outros permaneçam pobres. A lógica do capitalismo é o acúmulo, portanto, para que alguns fiquem com muito, outros precisam ficar com pouco ou com quase nada.
Contudo, não é sobre o prejuízo material que desejo colocar meu enfoque. O que me assusta é constatar que o capitalismo avançado da sociedade contemporânea está conseguindo, com êxito, completar o processo de desumanização do homem. Por um lado, fomos transformados em consumidores insaciáveis e, por outro, em objetos de consumo. A evidência disso é a forma que as relações sociais assumem em nossos dias. Com que facilidade as pessoas são usadas e descartadas, como se não fossem nada além de corpos que podem, por um tempo, proporcionar prazer ou trazer algum tipo de benefício! Existe uma tendência de não percebermos as pessoas como seres integrais, mas apenas como invólucros, assim, não precisamos ter cuidado para não magoar, não ferir. Como é o corpo que é valorizado, nos tornamos vítimas- particularmente as mulheres- de uma luta ensandecida por um padrão estético inatingível para a maioria. A frustração e a baixa auto-estima são alimentadas, dia após dia, pelas revistas, outdoors, televisão e toda forma de veículo de comunicação. Obviamente, o sistema lucra bilhões com essa busca desenfreada pelo corpo perfeito e com a batalha sem trégua contra o envelhecimento.
Em seu livro Ensaio sobre a cegueira, José Saramago, metaforicamente, faz uma alusão muito apropriada à sociedade contemporânea. Vivemos uma epidemia de cegueira, não somos capazes de enxergar que por traz de cada rosto, de cada corpo, existe um ser humano com uma história, alguém fervilhando de sentimentos, que deseja, acima de tudo, ser visto como pessoa humana, reconhecido, amado incondicionalmente. O autor mostra que nossa cegueira é de difícil diagnóstico porque não a percebemos. Se nos tornássemos fisicamente cegos, quem sabe, poderíamos então ver nos outros aquilo que realmente interessa.
A obra de Saramago é um convite para que resgatemos nossa humanidade. Não acredito que isso vá acontecer à curto prazo, pelo contrário, penso que ainda levará muitos anos para começarmos a reverter esse processo. Todavia, permanece o consolo de saber que nessa sociedade de cegos existem, à semelhança da mulher do médico – personagem do livro – pessoas que não perderam sua visão. Entretanto, para enxergar além, para ter percepção, é cobrado o alto preço da dor de saber, sem dispor, contudo, do poder necessário para transformar de modo imediato. Isso, por vezes, gera um sentimento de inadequação que pode arrefecer a determinação daqueles que enxergam e fazê-los desejar gritar: "Pare o mundo porque eu quero descer!" Mas sabemos que a vontade de desistir é apenas momentânea. São fortalecidos pela idéia, ainda que utópica, de que de alguma forma podem contribuir para a construção de uma sociedade que seja, de fato, composta de seres humanos que se reconhecem como tais.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Sobre a Teoria da Estruturação de Anthony Giddens



Seguindo a tendência da sociologia contemporânea, Giddens procura, com sua teoria da estruturação, resolver o problema da dicotomia indivíduo e sociedade e, por conseguinte, do antagonismo teórico-metodológico derivado de tal dicotomia. De um lado, temos o objetivismo, postulado pelo funcionalismo e pelo estruturalismo, propondo, à semelhança das ciências naturais, leis que regem os fenômenos sociais, determinando a ação dos indivíduos. Por outro lado, temos as teorias interpretativistas, para as quais, são os indivíduos e o sentido que estes atribuem às suas ações que interessam. Para superar tal antagonismo, Giddens propõe uma síntese teórica que conjuga estrutura e ação.
Na teoria da estruturação, as ações dos indivíduos são dotadas de consciência e intencionalidade, embora estes não tenham domínio total das condições e das conseqüências dos seus atos, já que alguns resultados não são previstos. Nesse sentido, a história, construída pelas atividades intencionais dos indivíduos, não acontece de forma premeditada, mas resulta do desejo de buscar uma direção consciente para as ações, ainda que as conseqüências de uma determinada ação possam não ser àquilo que se intencionou originalmente. Dessa forma, vê-se em Giddens uma percepção episódica da história, rejeitando, assim, a noção de leis que governam o processo histórico. A vida social possui regularidades, mas não são naturais, são regularidades reflexivas.
Para sistematizar sua teoria, Giddens define o conceito de estrutura como um conjunto de regras que, segundo o autor, são inerentemente transformacionais, e de recursos utilizados na reprodução social. Tais regras são de dois tipos: elementos normativos e códigos de significação. Os recursos também são classificados em duas espécies: recursos impositivos, resultantes da coordenação da atividade dos agentes, e recursos alocativos, provenientes do controle de produtos materiais ou de aspectos do mundo material. A noção de estrutura é primordialmente processual. Diz respeito, em análise social, às propriedades de estruturação que permitem práticas sociais semelhantes e, por conseguinte, recorrentes, por dimensões variáveis no tempo e no espaço.
Para Giddens, a estrutura é apenas uma “ordem virtual” Assim, os sistemas sociais, que compreendem as a atividades dos agentes humanos, não possuem estruturas, mas propriedades estruturais que, por seu turno, são o que há de mais estável e permanente nas sociedades. As propriedades estruturais mais profundamente enraizadas, implicadas na reprodução de totalidades sociais, são chamadas de princípios estruturais.
A dualidade da estrutura -propriedades estruturais dos sistemas e ação- possui papel central para a construção teórica giddesiana, que não admite oposição. A estrutura é, concomitantemente, restritiva e facilitadora. Não deve ser entendida como externa aos indivíduos, no sentido proposto por Durkheim.
O conceito de ação social é fundamental na teoria de Giddens. O autor caracteriza a ação social por meio de três atributos: racionalidade, reflexividade e intenção. A primeira implica que agir socialmente é agir com certo grau de racionalidade, não sendo, portanto, simples ato mecânico. A segunda, reflexividade, diz respeito à capacidade dos indivíduos de serem sujeitos e objetos de sua própria vida. Por fim, a intencionalidade, que é o elemento não premeditado na ação. Embora a ação seja direcionada por um objetivo, há elementos da intencionalidade que acontecem de forma indireta ou não premeditada.
A dinâmica da interação social pode acontecer de dois modos: face a face, situações de co-presença, e de forma sistêmica que diz respeito às relações recíprocas entre agentes que estão fisicamente ausentes. O poder seria uma característica intrínseca da vida social, não sendo necessariamente, repressivo ou opressor. Nas práticas sociais os indivíduos são constituídos também na dimensão do poder. Tais indivíduos podem agir em duas esferas: institucionalmente ou particularmente. Na esfera institucional, os indivíduos agem de acordo com os sistemas abstratos, não havendo exigência de uma presença física. Em tal esfera, as transformações só podem ocorrer através da ação coletiva dos agentes. Na esfera particular, ações são ações do cotidiano, em contextos de co-presença, pelas quais, os agentes interferem diretamente no meio social.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Gênese e Desenvolvimento do Protestantismo em Max Weber


A contribuição de M. Weber (2000) para compreendermos o surgimento e o avanço do protestantismo é imprescindível. Ainda que não tenha se proposto elaborar uma história desse fenômeno religioso, é ele que, ao desejar encontrar um exemplo histórico da existência de um vínculo entre o comportamento ético-religioso e transformações na esfera econômica, oferece-nos uma visão mais abrangente da religião protestante. O exemplo buscado, foi fornecido pela civilização ocidental com seu modo de produção capitalista e a orientação ética do protestantismo.
Nesse sentido, o desenvolvimento do Ocidente ocorreu com ajuda significativa de uma nova perspectiva difundida pela Reforma Protestante, sobretudo, na sua vertente calvinista, cujo corpo doutrinário exige uma mudança efetiva na vida do fiel que deve ser exteriorizada através do cumprimento zeloso da vocação para a qual cada um foi chamado, tendo em vista a salvação. O propósito único da vida é aumentar a glória de Deus aqui na terra, e isto deve ser feito individualmente. Aí percebemos uma ruptura com o cristianismo medieval onde o enfoque é colocado sobre a comunidade e não sobre o indivíduo. Isto fez com que a nova instância religiosa estivesse mais apta a atender as reivindicações de autonomia que surgem com o mundo moderno.
No pensamento weberiano, a esfera religiosa é essencial no processo de racionalização, explícita em alto grau no protestantismo. A afinidade com o capitalismo se dá precisamente por esta característica da ética protestante, em especial, a ética calvinista que com sua ascese intra-mundana desenvolve o senso do impessoal e do desapego ativo convergindo, assim, com a “impessoalidade da racionalidade cientifica e técnica” (Signore, 1993, p. 116) própria da modernidade. Por meio da investigação de Weber temos um panorama do ethos protestante e sua importância no estabelecimento e legitimação de uma nova ordem social. O sociólogo alemão procura mostrar como o sentido, encontrado por muitos na teodicéia calvinista, foi o responsável para que estes assumissem uma postura ético-moral que auxiliou na consolidação do modo de produção capitalista.



SIGNORE, Mario. Ética religiosa e racionalidade moderna. In: PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (Orgs.) Deus na filosofia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 15 ed. São Paulo: Pioneira, 2000