domingo, 14 de dezembro de 2008

Gentileza: o Profeta Agradecido

Esta é uma das 56 colunas pintadas pelo Profeta no Viaduto do Caju, Rio de Janeiro. As colunas foram recuperadas através de um movimento organizado por um professor universitário e se tornaram patrimônio da cidade.


Este post é diferente daquilo que geralmente costumo colocar aqui. Não se trata de nenhuma reflexão sociológica ou resenha de algum livro. Quero compartilhar algo sobre uma pessoa cuja vida traduz bem aquilo que eu concebo como uma vida válida. Refiro-me a José Datrino, ou melhor, ao Profeta Gentileza, alcunha pela qual ficou conhecido na cidade do Rio de Janeiro. De fato, Gentileza era um profeta no sentido mais exato do que é proposto no Antigo de Testamento. A principal missão de um profeta não é prever o futuro, antes, é falar sobre o presente. O caracteriza a profecia israelita é, sobretudo, a denúncia. O Profeta do Rio de Janeiro fez exatamente isso. Encontrando nas palavras de Cristo o embasamento para sua pregação, proclamou o amor, a justiça social e uma existência pautada pela gratidão. Não propôs projetos mirabolantes que buscam transformar o mundo sem antes transformar as pessoas. Gentileza compreendia que só podemos realmente viver em um mundo melhor se tivermos cuidado com os semelhantes que estão ao nosso derredor. São nas relações de pessoa para pessoa, no cuidado com a natureza que nos cerca, que validamos nossa existência, contribuindo, desse modo, para elaborar uma nova definição do que é ser humano.



Gentileza - Marisa Monte

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro
Ficou coberta de tinta

Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro
Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras
E as palavras de Gentileza

Por isso eu pergunto
À você no mundo
Se é mais inteligente
O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola
A vida é o circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o Profeta

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A sociologia contemporânea e seu esforço para superar as antinomias da sociologia clássica.


A sociologia contemporânea caracteriza-se, sobretudo, por sua tentativa de superar as dicotomias típicas da sociologia clássica, tais como: indivíduo versus sociedade; objetivismo versus subjetivismo; explicação versus interpretação; estrutura versus ação; determinismo versus contingência.
O estrutural-funcionalismo de Parsons e Merton, seguindo uma tradição mais objetivista em Durkheim, centrada na questão da ordem, opta pelo determinismo próprio dessa tradição. Embora Parsons evoque Weber na construção de sua teoria geral da ação, sua ênfase não está nas ações dos indivíduos, como em Weber, mas nas estruturas que ele concebe de forma sistêmica. A sociedade é composta por sistemas distintos que atuam para o bom funcionamento do todo. Ainda que privilegie o conceito de ação, a teoria parsoniana não suplanta as antinomias, já que pende, de forma óbvia, para as determinações estruturais.
Merton inova ao introduzir a perspectiva do comportamento desviado e da noção de disfunção. Entretanto, de modo geral, ele também põe sua ênfase sobre as estruturas em detrimento da liberdade dos indivíduos. O comportamento desviado é produto da própria organização social, portanto, longe de ameaçar o equilíbrio da estrutura, ele próprio desempenha uma função, contribuindo para o funcionamento da sociedade. Contudo, para Merton, quando um sistema ou elementos de sistemas não possuem plasticidade suficiente para a constante adaptação que o organismo social exige, eles se tornam disfuncionais, como uma parte do corpo que se encontra doente e ameaça o desempenho de todo o organismo.
Norbert Elias, com sua proposta de sociologia relacional, avança na desconstrução da oposição indivíduo e sociedade. Oposição essa que resulta apenas de construções teóricas, não é factual, já que a sociedade não tem existência independente dos indivíduos e, estes, por sua vez, são forjados pela sociedade. Apesar de Elias tentar mostrar a incoerência dessa dicotomia, seus trabalhos revelam uma tendência para as determinações sociais.
Pierre Bourdieu, também numa proposta de sociologia relacional, procura sintetizar elementos do conhecimento objetivista e da fenomenologia. Seu esforço para superar as dicotomias cristaliza-se, especialmente, nos conceitos de campo e habitus. Assim, o conhecimento praxiológico, defendido pelo autor, propõe que deve se considerar não somente os sistemas das relações objetivas, como postula o objetivismo, mas também a relação dialética entre essas estruturas e as disposições estruturadas – habitus – nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las. Tal relação dialética seria o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade. Como na teoria Bourdieusiana, o habitus é, primordialmente, reprodução do que foi internalizado, percebemos, assim, uma tendência de ênfase sobre as estruturas.
Anthony Giddens, em sua teoria da estruturação, afirma que a estrutura é apenas uma “ordem virtual”. Assim, os sistemas sociais, que compreendem as atividades dos agentes humanos, não possuem estruturas, mas propriedades estruturais que, por seu turno, são o que há de mais estável nas sociedades. As propriedades estruturais mais profundamente enraizadas, implicadas na reprodução de totalidades sociais, são chamadas de princípios estruturais.
A dualidade da estrutura -propriedades estruturais dos sistemas e ação - possui papel central para a construção teórica giddesiana, que não admite oposição. A estrutura é, concomitantemente, restritiva e facilitadora. Não deve ser entendida como externa aos indivíduos, no sentido proposto por Durkheim.
O conceito de ação social é fundamental na teoria de Giddens. O autor caracteriza a ação social por meio de alguns atributos, tais como: racionalidade e reflexividade. A primeira implica que agir socialmente é agir com certo grau de racionalidade, não sendo, portanto, simples ato mecânico. A segunda, reflexividade, diz respeito à capacidade dos indivíduos de serem sujeitos e objetos de sua própria existência. Além desses atributos, o autor fala de intencionalidade ao discorrer sobre as conseqüências não premeditadas da ação. Embora a ação seja direcionada por um objetivo, há elementos da intencionalidade que acontecem de forma indireta ou não premeditada. Na concepção de Giddens, o agente tem papel de destaque. Ele privilegia a contingência em detrimento do determinismo. As transformações acontecem por meio da atuação dos agentes.
A abordagem interacionista e a etnometodologia focam as ações dos indivíduos. O interacionismo simbólico concentra-se nos significados que os atores conferem às suas atividades. O mundo social é construído por eles por meio de uma interação constante. A etnometodologia, por seu turno, com sua tendência à descrição, ressalta a perspectiva dos sujeitos, procurando evidenciar como as pessoas constroem a realidade social cotidianamente, elaborando um conhecimento sociológico prático.
Habermas, com sua teoria da ação comunicativa, demonstra um incrível otimismo acerca da capacidade transformadora dos indivíduos interagentes. Tais indivíduos têm, segundo ele, a habilidade para coordenar de modo consensual as suas ações por meio de um entendimento intersubjetivo, que ocorre de forma dialógica, fundamentada na disposição comum de aceitar os melhores argumentos (razões), evocados para justificar e legitimar determinados enunciados ou comportamentos.
Diante do que foi posto, vimos que, embora a sociologia contemporânea empreenda um esforço para a superação das antinomias, esse esforço, ao que parece, redundou, em grande medida, em ênfase sobre uma ou outra perspectiva. Talvez, porque tais antinomias sejam insolúveis, já que não temos uma teoria que consiga, de fato, um equilíbrio total entre os postulados teórico-metodológicos do objetivismo e os postulados teórico-metodológicos do subjetivismo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A eleição de Obama como evidência do processo de transformação cultural nos EUA.


Há algum tempo atrás, tive o privilégio de ler a biografia de Martin Luther King. Estava motivada pelo desejo de desvendar a questão do racismo que, para mim, sempre se apresentou como um enigma. Por mais que me esforçasse, não conseguia compreender como isso se processava na mentalidade das pessoas. Admito minha incompetência, não consegui relativizar a tal ponto de entender os sentimentos de um racista. Continuo pensando que é uma absoluta falta de racionalidade.
Os acontecimentos narrados no livro suscitaram-me uma profunda admiração pelo líder negro pacifista, mas também uma grande indignação com a sociedade estadunidense e um temor de que esse mundo fosse mesmo uma grande “M”. Lembrei-me de um filme que assisti, no Brasil recebeu o título de “A corrente do bem”, que conta a história de um garoto que leva à sério um trabalho de ciências sociais, no qual o professor pede aos alunos que façam algo para mudar o mundo. A cena emblemática, segundo minha concepção, é quando o menino pensa que todos os seus esforços foram fracassados e fala para o professor “Esse mundo é uma bosta mesmo!”. Pois foi essa a sensação que tive ao ver narrados, na biografia, os episódios de violência, tanto física quanto simbólica, que exprimiam todo ódio e intolerância dos brancos em relação aos negros nos Estados Unidos.
Agora, 53 anos depois que Rosa Parks deu início ao movimento de resistência negro, recusando-se a ficar em pé num ônibus para que um branco se sentasse, vemos de forma explícita os frutos da semente que fora plantada por ela e regada por King e seus seguidores. Um negro chegou à presidência dos Estados Unidos! À pouco tempo isso era inimaginável. Um país conservador, de maioria branca e que ainda alimenta, em grande medida, tendências racistas, elegeu um negro, filho de pai Queniano e que teve como padrasto um indonésio, para presidente.
Alguns dirão, não sem motivo, que os estadunidenses elegeram Barack Obama mais por rejeitarem Bush e sua plataforma de governo do que propriamente pelas qualidades políticas do candidato democrata. Votar no candidato republicano, John McCain, seria votar na continuidade, a maioria preferiu a ruptura. Talvez seja otimismo demais de minha parte, mas acredito que o resultado dessa eleição é a evidência de um processo de transformação cultural. Com o decorrer do tempo, veremos se esse prognóstico se confirma. Para o bem de todos, espero que sim. Então, quem sabe, possamos dizer com toda convicção que, afinal, esse mundo não é uma bosta tão grande assim, ou pelo menos, ele não é só bosta.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sobre o poder simbólico em Pierre Bourdieu



Bourdieu explica que Durkheim seguindo a tradição kantiana, mas negando sua cosmologia sustentada pelas categorias a priori, lança os fundamentos de uma sociologia das formas simbólicas, oferecendo uma base empírica para ordenação lógica do mundo. Partindo da análise de Durkheim, o autor procura mostrar que o poder simbólico manifesta-se por meio de sistemas simbólicos que, por sua vez, são estruturas estruturantes como a arte, a religião, a língua
Numa primeira síntese, Bourdieu afirma que os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, constituem um poder estruturante porque são estruturados. Os símbolos, encadeados pelos sistemas simbólicos, têm como função preponderante a integração social. Eles conferem sentido ao mundo social, possibilitando, desse modo, o consensus acerca da ordem estabelecida. Sob essa perspectiva, numa segunda síntese, assinala que os sistemas simbólicos cumprem uma função política. O poder simbólico emerge como um poder capaz de impor significações, e as impõe como legítimas, contribuindo, dessa forma, com a dominação vigente.
O responsável pela produção dos sistemas simbólicos é o corpo de especialistas circunscrito ao seu campo específico. Tais especialistas estão à serviço da classe dominante e são , por excelência, os produtores da doxa, ou seja, àquilo que é aceito como opinião geral que, por seu turno, sustenta o poder estabelecido no âmbito de cada campo. O campo é o espaço onde as relações são objetivamente definidas através do modo como são distribuídas as diversas formas de capital. Os agentes, específicos de cada campo, são capacitados para as funções e os embates próprios deste campo. Intimamente relacionado ao conceito de campo, está o conceito de habitus que Bourdieu define como um conjunto de disposições, decorrente de um processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade, que leva os agentes a procederem de acordo com as possibilidades existentes dentro da estrutura do campo.
O poder simbólico, imperceptível e invisível, é uma forma transfigurada e legitimada das outras formas de poder. O que torna possível tal poder, conclui o autor, é a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

A arte como reflexo dos processos de transformação social

L'Embarquement pour L'iale de Cythère
Antoine Watteau


Por meio da arte, particularmente representada pelo quadro de Antoine Watteau, Embarque para a Ilha de Citera, Norbert Elias, em seu ensaio A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor, faz uma análise do processo de mudança social que vai do Antigo Regime francês, encabeçado pelo Rei-Sol Luis XIV, até início do século XX. A ilha de Citera, enunciada na obra, era símbolo de uma imagem do desejo, uma utopia secular, o lugar onde o amor poderia ser vivido plenamente sob as bênçãos da deusa do amor. O revigoramento do mito na modernidade evidencia o vínculo não rompido entre a antiguidade e o nosso tempo.
O quadro seria reflexo de um período de transição, no qual os súditos do velho rei ansiavam pela libertação de seu governo opressor. Quando Watteau faz os primeiros rabiscos da obra, trabalho que deveria ser elaborado como requisito resultante de sua admissão na Academia Real, em 1712, o rei estava idoso e doente. Ao concluí-lo, em 1717, o rei já havia falecido.
Segundo Elias, o clima sombrio da época de Luis XIV  juntamente com o clima festivo da regência de Luis XV podem ser percebidos no quadro, que evidencia também a passagem do estilo austero do barroco para o alegre e frívolo rococó. O pintor era, como a maioria dos artistas da época, proveniente de uma família de classe inferior, e conseguiu ascensão por meio do patrocínio da aristocracia de corte que, por sua vez, era quem ditava as regras do gosto artístico.
Entretanto, com a ascensão da burguesia, cujo marco decisivo foi a Revolução de 1789, a classe artística se vê livre da tutela da nobreza e pôde, então, se auto-declarar especialista em questões de bom gosto. Nota-se, assim, uma gradativa transformação no sentido de que não é mais o público consumidor que determina a produção artística, mas é o artista que passa a ditar os padrões literários e artísticos.
Durante o período imediato pós-revolução, o quadro de Watteau foi alvo de críticas e rejeitado por ser, segundo o gosto burguês, representativo de um período no qual predominava a futilidade. O rococó era, na concepção da burguesia, a expressão mais exata da superficialidade e dos excessos que devem ser superados.
Contudo, ainda que fossem lentas e encontrassem resistências das gerações mais velhas, as inovações sempre aconteciam. Assim, na segunda metade do século XIX, o quadro de Watteau foi redescoberto e transformado em objeto de culto por um grupo de livres pensadores denominado Círculo da Rue de Doyenné. O grupo ansiava, acima de tudo, reviver a época de Luis XV, com suas festas e roupas elegantes. A ilha de Citera volta à tona idealizada como o paraíso do amor.
A utopia leva Gerard Nerval, um dos principais nomes do círculo, a fazer uma viagem à ilha e, conseqüentemente, a ter um encontro com a realidade. O que presenciou não tinha nada a ver com o que fora sonhado. De acordo com Elias, a viagem de Nerval e, por conseguinte, sua frustração, é paradigmática do clima de pessimismo que se instaura no fim do século XIX. Desse modo, conclui Elias, a fantasia de Citera, assim como o quadro de Watteau, tornaram-se o ponto de partida para o problema do contraste entre o belo sonho e a dura realidade, “o predomínio das utopias ideais cede lugar às utopias do medo e da angústia”.

domingo, 17 de agosto de 2008

A questão racial no Brasil



           O Brasil conseguiu forjar para si, historicamente, a imagem de país que acolhe a todos de forma indistinta. Assim, ideologicamente passamos a acreditar que não há outro lugar no mundo onde a convivência com as diferenças, sejam elas étnicas, religiosas, de orientação sexual ou qualquer outra, aconteça de forma tão pacífica. Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil fala sobre nossa tendência para o não conflito, mas é precisamente  por isso, afirma ele, que não conseguimos promover transformações essenciais. Todas as nossas revoluções são epidérmicas. O autor evidencia que o que pensamos e acreditamos ser verdade é bem diferente do modo como agimos na prática. Aliás, quando se trata de idéias, estamos sempre à frente do nosso tempo. Um exemplo disso é que adotamos o ideário liberal-democrático muito tempo antes da abolição da escravatura. Sempre nos faltou  coerência entre o discurso e a prática.
                     Não é sem razão que acredita-se que vivemos em uma democracia racial. Essa impressão de convivência pacífica ganha força especialmente quando fazemos comparações com outros países como os  EUA e África do Sul, nos quais, a segregação imposta aos negros pela elite branca dominante foi marcada por um racismo explícito e brutal. Entretanto, é  justamente por ser explícito que o racismo nesses países possa, talvez, ser combatido de forma mais eficaz.
                   Milton Santos, ao falar da diferença entre ser negro no Brasil e em outros países, denuncia que em nossa sociedade o problema do racismo é mais difícil de ser resolvido. Isso porque, aqui, a força de trabalho escrava foi, desde o princípio da nossa história econômica, “essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes”. Daí a perpetuação de uma ética conservadora, injusta e que perpetua as desigualdades. .
Outro obstáculo é a incongruência entre o que pensamos ser e o que somos de fato. Afinal, enquanto não nos dermos conta de que nosso país não é o paraíso democrático ideologicamente difundido por aí, não haverá solução para a intolerância que persiste, embora de forma velada, como afirma Santos. É importante salientar que a população negra não posa de vítima passiva. O movimento de resistência teve início ainda durante o regime escravagista. A formação dos quilombos, a preservação da cultura, de modo geral, e da religiosidade africana, particularmente, permite que tenhamos uma idéia  da dimensão dessa resistência.
                   Atualmente há um debate em torno de como podemos  minimizar os prejuízos  históricos que atingem os afrodescendentes. No cerne da discussão está  a criação de cotas nas universidades que faz parte das chamadas políticas de ação afirmativa, que são políticas que visam ampliar o acesso de minorias a todos o setores da sociedade. É uma questão polêmica e não há consenso nem mesmo entre aqueles que seriam favorecidos.
Talvez por falta de um esclarecimento maior da população brasileira, o debate tem girado em torno de uma noção do senso comum: a questão do mérito, ou seja, a crença de que todos têm que passar pelo mesmo processo seletivo, aqueles que entram na universidade devem conseguir  isso  por meio de esforço pessoal.
                  No entanto, o problema não é tão simples assim, não é questão de mérito pessoal. Seria se todos partissem de iguais condições. Não é o que acontece. Como  um indivíduo que desde à infância teve que lutar pela sobrevivência, que foi condicionado a estudar nas piores escolas, que não teve acesso a uma educação mais abrangente através do acesso à livros e à outros meios de informação, pode competir com aqueles que estudaram nas melhores instituições de ensino, que tiveram o direito à infância garantido, que puderam desfrutar de vários  meios de acesso a informação?
                Considerando o que foi posto, poderíamos afirmar que o problema é um problema de classe e não de cor. Na verdade, trata-se de ambos. É de classe porque são as camadas mais pobres que vêem sua passagem para o ensino superior bloqueada por não poderem competir de igual pra igual com alunos das classes média e alta. É um problema de cor porque a maioria da população pobre, 60% segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), é composta por negros e pardos.
                     O movimento negro alega que não tem como dissociar a questão de classe da questão racial, pois são, sobretudo, os negros e os pardos as maiores vítimas da exclusão. Por outro lado, há o argumento de que o sistema de cotas é anticonstitucional porque feriria o princípio básico da igualdade de direitos. Não se pode privilegiar um grupo em detrimento de outros. O fato é que nunca  houve, neste país,  igualdade de direitos. A cidadania não se estende à todos os grupos sociais. Por que então usam esse argumento de igualdade quando se propõe algo pra minimizar uma injustiça de séculos? Como afirma M. Santos, nós precisamos de atitudes concretas e não de discursos que não transformam a realidade. Os defensores das cotas sabem que esta não é a melhor solução, mas argumentam que é a resposta mais imediata para um problema histórico sobre o qual todos falam, mas poucos fazem alguma coisa.

domingo, 3 de agosto de 2008

A ambiguidade humana no conto "A igreja do diabo" de Machado de Assis.


        A ambiguidade humana é a matéria-prima principal utilizada por Machado de Assis para compor grande parte de sua obra. O conto “A Igreja do diabo” evidencia que o autor, indo contra os pressupostos cristãos de uma total separação entre o mal e o bem, percebe o homem como um ser essencialmente contraditório e, por conseguinte, incapaz de seguir regras fixas, ainda que essas regras se resumam à única regra de não seguir regra nenhuma.
Segundo a narrativa do conto, um certo dia o diabo teve a idéia de fundar sua própria Igreja. Depois de comunicar, em tom de provocação, sua brilhante idéia a Deus, começa a por em prática o seu plano. Seus seguidores tinham que observar uma única norma: não impor limites aos seus maus intentos. Tudo que era proibido na Igreja de Deus poderia ser praticado sem inibições pelos adeptos da nova igreja. O diabo tinha como premissa a noção de que o homem é um ser totalmente propenso para o mal. Isso fica evidente na provocação que faz a Deus, procurando mostrar a hipocrisia que reinava entre os fieis da igreja oficial. Afinal, “as capas de seda, tinham franjas de algodão”.
O sucesso do novo empreendimento foi imediato, o Coisa Ruim arregimentou muitos discípulos. Finalmente as pessoas podiam dar vazão a todos os seus mais baixos sentimentos, como inveja, egoísmo, avareza e vaidade, e a todas as suas demandas carnais, como a lascívia, glutonaria e a  preguiça. Contudo, depois de algum tempo, o ser infernal é surpreendido ao perceber que seus seguidores começam a infringir sua regra. Assim como praticavam o mal, enquanto se diziam bons, agora estavam fazendo o bem de forma camuflada, ainda que tivessem se assumido como seres tendentes ao mal. Ironicamente, “as roupas de algodão tinham franjas de seda”.
A natureza contraditória do ser humano, revelada pelo conto, evidencia a opção que o autor faz por um certo relativismo moral. Ele se opõe, de modo contundente, aos absolutismos da moralidade cristã. É recorrente, na obra machadiana, o diálogo com textos bíblicos, não para reafirmá-los, mas para mostrar sua inviabilidade prática. Os postulados da religião entram em conflito com a natureza ambígua do ser humano, no entanto, sua existência é condição necessária para que o homem conheça a si mesmo. Para o autor, Deus e o diabo são representações mistificadas da natureza humana. Portanto, seria impossível enquadrar o homem ou exigir que ele faça uma opção radical por um ou por outro. Embora se apresentem como realidades antagônicas, bem e mal são, fundamentalmente, realidades complementares. A existência de uma pressupõe a existência da outra, assim como a consciência da luz pressupõe a existência da escuridão.
Ora, se a natureza humana é ambígua, a possibilidade de suplantar o mal deixa de existir. Daí vemos em Machado de Assis um pessimismo em relação à humanidade. Não há em sua obra qualquer vislumbre de esperança acerca de um futuro onde só o bem prevaleça, ainda que esse bem deixe de ser representado pela religião e tome a forma da Ciência. Nesse sentido, uma verdadeira evolução só poderia acontecer se o homem deixasse de ser homem. Por enquanto, o mal não é um inimigo que a humanidade possa derrotar sem prejuízo para si mesma.

Crítica social em "Memórias Póstumas de Brás Cubas"



            Memórias póstumas de Brás Cubas revela a capacidade impar de Machado de Assis de expor especificidades da formação cultural brasileira de um modo que só os mais atentos leitores são capazes de perceber. É como se Brás Cubas, personagem-título, fosse a síntese daquilo que era socialmente apreendido pelo autor, sobretudo em sua convivência com pessoas das 
classes mais altas.

             O romance é narrado em primeira pessoa por um defunto-autor e não por um autor-defunto, como ele faz questão de frisar com o objetivo de convencer o leitor que o fato de ser uma obra póstuma torna sua narrativa absolutamente confiável, já que um morto não necessita distorcer os fatos. Mas, um burguês brasileiro não é confiável nem depois de morto. Isso fica evidente em algumas partes da narrativa. Como, por exemplo, no episódio do seu enterro, onde ele procura mascarar sua insignificância justificando que o fato de haver poucas pessoas no seu cortejo era em decorrência de muitos não terem sido avisados e/ou por causa do mau tempo.

             Basicamente, o livro relata a história de um sujeito que não conseguiu fazer realmente nada de significativo na vida. Contudo, não é a vida insípida da personagem principal que torna o romance fascinante, mas o modo como essa história é contada. O autor usa a ironia como principal recurso para trazer à tona padrões de comportamento característicos da sociedade brasileira, especialmente da elite dominante que queria se mostrar moderna, adotando, no discurso, idéias e postura européias, mas defendendo, na prática, a manutenção de um sistema retrógrado . Assim, as relações de Cubas com outras personagens revelam dissimulação, jogo de interesses, um desejo sempre presente de se dar bem, ainda que lançando mão de estratagemas nada éticos.

        Brás Cubas é o típico burguês brasileiro. Se, geralmente,  na obra machadiana percebemos uma visão do homem, no sentido universal, destituída de otimismo, em Memórias póstumas é como se ele estivesse nos dizendo que, se esse homem fosse um burguês brasileiro, poderia ser ainda pior. O cinismo com o qual o personagem conduz sua vida, e que faz questão de deixar claro na narrativa, evidencia que nada pode afetar profundamente àqueles que não dependem do seu suor para comer, mesmo que todos os seus empreendimentos fossem frustrados. A mais terrível das tragédias, para a burguesia nacional, seria depender do próprio trabalho para sua sobrevivência. Daí o protagonista do romance poder afirmar, depois de listar seus fracassos, que “coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto.”

          Embora Machado de Assis construa seu personagem considerando um contexto cultural específico, deixa claro que as causas da miséria humana não estão circunscritas a uma cultura ou circunstância histórica. A miserabilidade é inerente à condição humana, é o que o autor deseja demonstrar em sua última negativa: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Todavia, parece que a acentuação dos vícios ou das virtudes, que torna a vida mais ou menos miserável, pode depender da estrutura social de cada sociedade.

             O livro não aponta caminho algum, a não ser o da aceitação da existência com tudo que isto implica. Se tiveres a sorte de nascer burguês, tanto melhor, antes ser Brás Cubas do que ser Dona Plácida que sempre teve que trabalhar para comer. Entretanto, apesar de todo ceticismo que o autor revela por meio da postura do protagonista diante da vida, no modo como  escreve parece haver uma indicação daquilo que, para ele, pode ser a nossa única forma de salvação: o senso de humor.

sábado, 2 de agosto de 2008

O blog


Escrever é um modo de falarmos às pessoas que realmente se interessam pelo que temos a dizer. Assim, nos poupamos e poupamos as possíveis vítimas de nossa excessiva sensibilidade. Certa vez alguém disse que lemos para saber que não estamos sós. Espero que aqui, todos encontrem companhia, que haja reconhecimento mútuo. Sejam bem vindos!